Linhas de metro completamente desertas, ruas vazias, universidades sem aulas, apenas os serviços básicos em funcionamento numa cidade com tudo fechado — enquanto o Governo apela a que os trabalhadores vão para os seus empregos. É assim que a Venezuela está a começar esta quinta-feira de greve geral, marcada pela oposição ao regime de Nicolás Maduro. Trata-se do último grande protesto marcado pela Mesa da Unidade Democrática na sequência de três meses de violentos protestos que já resultaram na morte de 96 pessoas. Objetivo: impedir Maduro de avançar com a convocatória de uma Assembleia Constituinte, vista pela oposição como a forma de o Presidente se tentar agarrar ao poder.

Mergulhada há anos numa profunda crise económica que tem deixado a população à beira do desespero, inclusivamente com dificuldades em ter acesso a bens essenciais, a Venezuela atravessa agora um dos momentos políticos mais difíceis e violentos de que há memória no país. A greve geral agendada para esta quinta-feira pela oposição (a Mesa da Unidade Democrática, coligação de partidos que procuram retirar o Partido Socialista Unido da Venezuela do poder, que ocupa há 18 anos) resulta de um acumular de momentos de tensão ao longo do último ano. A última foi a convocatória de uma nova Assembleia Constituinte, por Nicolás Maduro.

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A greve desta quinta-feira representa, segundo os deputados da oposição, um “mecanismo de pressão e preparação para a escalada definitiva” — a MUD já apresentou um acordo de governabilidade para a formação de um governo alternativo ao de Maduro que espera poder pôr em prática num futuro próximo. “Quando um país decide mudar, não há força que o possa deter”, afirmou o deputado da oposição Freddy Guevara.

Ao dizer que o “país decide mudar”, o deputado referia-se ao resultado do plebiscito informal feito no último domingo, no qual participaram cerca de 7,5 milhões de pessoas, tanto dentro como fora do país. Aos venezuelanos, foram feitas três perguntas: se rejeitavam a eleição de uma Assembleia Constituinte por Nicolás Maduro, se apelavam às Forças Armadas e aos funcionários públicos que cumprissem a Constituição de 1999 e obedecessem às decisões do parlamento e ainda se aprovavam a renovação dos poderes públicos através do voto. De acordo com os resultados divulgados pela imprensa, 98% dos participantes votaram ‘sim’ como resposta às três questões.

Greve geral na Venezuela convocada pela oposição desafia Nicolás Maduro

Na origem da crise económica da Venezuela está sobretudo a queda dos preços do petróleo, a principal exportação do país, representando mais de 90% das receitas que entram na Venezuela. A diminuição progressiva dos preços do petróleo fez diminuir os recursos do Estado e obrigou a cortes nas importações, que resultaram numa crescente escassez inclusivamente de bens essenciais, como a alimentação. Este ano, o FMI previa que a taxa de inflação no país em 2018 poderá atingir os 2.000%. A esta crise económica junta-se a profunda divisão política entre apoiantes de Maduro — chamados ‘chavistas’, pela sua adesão ao movimento iniciado por Hugo Chávez — e a oposição.

A profunda crise tem feito a popularidade de Maduro cair a pique e, em 2014, a oposição saiu à rua para violentos protestos contra o Presidente. Contudo, os protestos que têm marcado o último ano têm sido muito mais violentos. A mais recente onda de manifestações, que conduziu ao plebiscito de domingo e a esta greve geral, é explicada por três grandes momentos ao longo dos últimos dois anos. Na sua origem estão as últimas eleições legislativas, realizadas em 2015, mas o conflito agravou-se sobretudo quando, em março de 2017, o Supremo Tribunal de Justiça assumiu as funções do parlamento e teve o último grande momento com a convocatória da Assembleia Constituinte, este ano.

A primeira grande derrota do PSUV

As eleições legislativas de 6 de dezembro de 2015 marcaram o início do atual momento político da Venezuela. O PSUV, que há 16 anos ocupava o poder em todos os órgãos de soberania do país, perdeu a maioria no parlamento pela primeira vez desde a chegada de Hugo Chávez ao poder, sofrendo uma pesada derrota contra a coligação Mesa da Unidade Democrática.

A oposição conseguiu 99 lugares no parlamento e o PSUV apenas 46, o que significa que a Mesa da Unidade Democrática conseguiu uma maioria de dois terços, necessária para a aprovação de leis orgânicas, designar os juízes do Supremo, levar a cabo uma reforma constitucional ou, em última análise, retirar o próprio Presidente do poder. Para Maduro, a ideia era assustadora: o potencial fim do regime, com as grandes decisões do parlamento nas mãos da oposição.

Supremo tenta bloquear parlamento

A 31 de março de 2017, o Supremo Tribunal de Justiça da Venezuela publicou uma decisão vista pela oposição como resposta de Maduro ao resultado eleitoral e tentativa de bloquear a maioria de dois terços alcançada pela MUD no parlamento — assumiu as funções da Assembleia Nacional enquanto se mantivesse a situação irregular naquele órgão.

E qual era a situação irregular? Desde 2016 que os juízes do Supremo — todos considerados leais a Maduro — tinham considerado que a maioria de dois terços da oposição no parlamento era inválida, devido à tomada de posse de três deputados cuja eleição esteve supostamente envolvida numa fraude. Como os deputados se mantinham em funções, o tribunal decidiu que “os poderes parlamentares serão exercidos diretamente pela câmara constitucional do Tribunal Supremo ou pelo órgão que esta estipular para salvaguardar o Estado de direito”.

Venezuela enfrenta a “mãe de todas as manifestações”

A decisão foi de imediato contestada pela oposição, que considerou a manobra um “golpe de Estado” e promoveu dezenas de manifestações contra o regime. Em abril, foi convocada aquela que ficou conhecida como “mãe de todas as manifestações”, uma resposta à marcha nacional convocada pelo próprio presidente Nicolás Maduro. O governo respondeu à manifestação com a presença das Forças Armadas nas ruas da capital, Caracas, e com a convocação de perto de meio milhão de civis armados para a Milícia Nacional Bolivariana, o que deixou em estado de alerta as instituições internacionais.

O Supremo ainda reverteu a decisão e devolveu os poderes ao parlamento, mas a bomba estava lançada: as manifestações, cada vez mais violentas, tornaram-se frequentes nas ruas das cidades venezuelanas. Desde abril, já morreram 96 pessoas nestes protestos.

Maduro anuncia Assembleia Constituinte

No mês seguinte, o presidente venezuelano fez uso de um dos seus poderes constitucionais para mais uma medida que levou a oposição a acusá-lo de se tentar agarrar ao poder: convocou uma eleição para escolher 500 elementos para uma Assembleia Constituinte com o objetivo de reformar a Constituição. “Convoco o poder constituinte original para atingir a paz de que a república precisa para derrotar este golpe fascista, e para deixar que os soberanos imponham a paz, a harmonia, e o verdadeiro diálogo nacional”, afirmou na altura o presidente venezuelano, explicando que quer acabar com a contestação da oposição.

Cerca de 7,5 milhões de pessoas responderam às três questões do referendo informal organizado pela oposição (LUIS ROBAYO/AFP/Getty Images)

A oposição apelou aos cidadãos que desobedecessem “a tal loucura” e continuou a convocar manifestações contra o regime de Nicolás Maduro. Este mês, como forma de legitimar as suas críticas, a oposição organizou uma consulta popular simbólica em urnas improvisadas por todo o país, em que participaram cerca de 7,5 milhões de pessoas. Os resultados foram expressivos: 98% dos participantes rejeitaram a convocação de uma Assembleia Constituinte e manifestaram o seu desagrado relativamente à governação de Maduro.

E agora? Maduro mantém convocatória mesmo enfrentando possíveis sanções

A convocatória da Assembleia Constituinte tem merecido críticas a nível internacional. Os Estados Unidos já anunciaram que vão aplicar sanções severas à Venezuela caso a assembleia avance. O senador republicano Marco Rubio anunciou na semana passada que Maduro devia esperar “severas sanções dos EUA se a Assembleia Constituinte acontecer”. “Os protestos terminarão se o Governo de Maduro regressar à ordem constitucional, libertar e conceder amnistia a todos os presos políticos, suspender a Constituinte e realizar eleições supervisionadas”, disse ainda.

Também na União Europeia o assunto das possíveis sanções está na ordem do dia — e até envolve uma polémica com Portugal. No final de uma reunião do Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros, esta segunda-feira, a alta representante da UE para a política externa, Federica Mogherini, afirmou aos jornalistas que a situação na Venezuela foi abordada na reunião, sublinhando que “a violência já reclamou demasiadas vidas e em que se arrisca que venha a escalar com a [criação da] Assembleia Constituinte”. A responsável comunitária pediu a Maduro que trabalhe no sentido de criar “melhores condições para voltar a trabalhar numa solução pacífica e negociada”.

Comissão Europeia confirma que discutiu mesmo o tema Venezuela

O El País noticiou, esta quarta-feira, que as sanções à Venezuela estão mesmo em cima da mesa e que 27 dos 28 Estados-membros da UE admitem aplicar estas sanções. Só Portugal é que estará contra a aplicação destas medidas. O Ministério dos Negócios Estrangeiros veio de imediato negar esta informação, afirmando que a situação da Venezuela ainda não foi discutida entre membros da UE — algo que vai contra a própria declaração de Federica Mogherini, que assumiu que o assunto foi abordado.

Apesar do resultado do referendo informal e das possíveis sanções que poderá enfrentar, Nicolás Maduro mantém a convocatória para a Assembleia Nacional Constituinte. “Convoco uma Constituinte pela independência e soberania, e a Europa, diga o que disser, não nos importa o que diga a Europa”, disse Maduro, acusando Federica Mogherini de ser “insolente” e de “dar ordens ao Governo da Venezuela”. “Federica Mogherini, equivocaste-te com o país. A Venezuela não é uma colónia da União Europeia”, rematou o presidente venezuelano.

Oposição venezuelana apresenta acordo de governabilidade para um um próximo Governo

Numa altura em que todas as previsões económicas só apontam para um agravar da situação, ao mesmo tempo que Maduro se tenta manter no poder a todo o custo, a resposta sobre o que irá acontecer num futuro próximo na Venezuela é difícil de dar. Uma das alternativas é o acordo de Governo que a Mesa de Unidade Democrática apresentou esta quarta-feira, naquele que é o primeiro passo rumo a um eventual governo para substituir o de Maduro. “A mudança política na Venezuela não só é imparável, mas iminente”, declarou o deputado Freddy Guevara quando apresentou o programa de Governo, que inclui ações imediatas no abastecimento alimentar do país e nos cuidados de saúde e ainda o fim das milícias paramilitares que o regime patrocina como forma de defesa e que têm contribuído para um escalar da violência no país.