O que se passa com as matrículas?

Este ano a história está a repetir-se. Basicamente houve alunos que não conseguiram entrar na escola da área de residência. Os pais culpam os esquemas fraudulentos alegadamente utilizados nas matrículas relacionados com o critério da residência. Um esquema que se verifica, sobretudo, em relação às escolas mais bem posicionadas nos rankings em Lisboa e no Porto.

Dizem os pais, cujos filhos não obtiveram vaga na escola desejada, que há quem peça a pessoas que vivem perto de certas escolas para se apresentarem como encarregados de educação. Podem ser familiares, amigos, ou até estranhos a troco de dinheiro. Dessa forma cumprem com um dos critérios prioritários de colocação — o da morada de residência — e conseguem obter colocação. Isto faz com que outras crianças acabem por ser colocadas em escolas mais longe de casa.

As listas das colocações do ensino básico foram conhecidas na passada sexta-feira. A primeira onda de contestação aconteceu na escola Filipa de Lencastre, em Lisboa. Esta segunda-feira, conforme noticiou o Público, repetiu-se no Liceu Pedro Nunes onde a PSP teve de acalmar os ânimos, perante os protesto dos pais face à ausência de respostas da direção, que acabaria por recebê-los.

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As escolas defendem-se dizendo que estão a cumprir com os critérios estabelecidos na lei.

A Filipa de Lencastre é a escola que aparece em 1.º lugar no ranking das escolas públicas para o ensino secundário e é uma das que tem sido mais vezes mencionada como sendo palco de problemas deste género.

Ao Observador, João Miguel Oliveira adjunto da direção do Agrupamento de Escolas Filipa de Lencastre, em Lisboa, garantiu que “não houve até agora alguma reclamação que tenha tido provimento, nem na anterior direção” e que “enganos podem existir, mas são corrigidos, obviamente. Tudo é passado a pente fino”.

Não conheço nenhum caso em que as coisas nesta escola tenham ultrapassado os limites da lei”, reiterou João Miguel Oliveira, adjunto da direção do Agrupamento de Escolas Filipa de Lencastre.

O diretor adjunto diz até entender a indignação dos pais, mas refere que o problema é que “há imensa gente a querer” ir para a escola, sobretudo por causa da posição no ranking. Além disso, explica, a carta educativa deixa de fora algumas ruas perto da escola. “Noutro dia veio aqui uma mãe dizer que via a escola da janela da sua casa e a questionar como podia não estar na área de abrangência da escola. Mas a verdade é que não está. A Praça de Londres já não faz parte.”

Filinto Lima, da Associação de Diretores de Escolas e Agrupamentos Escolares, também desconhece “casos [de moradas falsas] em que tal tenha acontecido”, embora não os negue à partida. “Não me admira muito que os pais, querendo aquela escola para o seu filho, usem essa estratégia” de dar a morada de outra pessoa. O diretor defende ainda que “em Lisboa, em que há muitos casos, as escolas, o conselho geral e o diretor deviam tomar alguma atitude”.

Mas sublinha a dificuldade de perceber a fraude no momento das matrículas e da sua análise. “Se suspeitarmos que existe um causa de fraude, seja qual o motivo, podemos acionar a Inspeção-Geral, mas nesses casos é muito difícil.”

Basicamente as escolas pedem um comprovativo de morada ao encarregado de educação, que pode ser um recibo da luz ou da água ou de outro serviço qualquer. A questão é quando este encarregado de educação é de fachada e serve apenas para esse propósito, pois aí tudo bate certo.

Quem pode ser encarregado de educação?

De acordo com o Estatuto do Aluno em vigor, considera-se encarregado de educação quem tiver menores a residir consigo ou tenha menores confiados aos seus cuidados:

  • pelo exercício das responsabilidades parentais;
  • por decisão judicial;
  • pelo exercício de funções executivas na direção de instituições que tenham menores, a qualquer título, à sua responsabilidade;
  • ou por mera autoridade de facto ou por delegação, devidamente comprovada, por parte de qualquer das entidades referidas nas alíneas anteriores.

No caso de divórcio ou separação, e, quando não haja acordo dos progenitores, o encarregado de educação será o progenitor com quem o menor fique a residir.

Na informação sobre as matrículas, que consta do site do Agrupamento de Escolas D. Filipa de Lencastre, lê-se que “sempre que o Encarregado de Educação não seja um dos progenitores ou quem detenha comprovadamente o poder paternal deve apresentar uma declaração de Delegação de Competências, devidamente preenchida”. E, quando os pais estão separados, “ambos devem delegar essas funções”, sendo que “todas as assinaturas terão de ser reconhecidas pelo notário”.

Ou seja, basta uma declaração dos dois pais para qualquer outra pessoa ser encarregado de educação do seu filho.

Quais as obrigações do encarregado de educação?

O Estatuto do Aluno define uma série de responsabilidades para os encarregados de educação. Desde logo o acompanhamento ativo da vida escolar do aluno, passando por outras que implicam mais diretamente o contacto com a escola, tais como a contribuição para a “criação e execução do projeto educativo e do regulamento interno da escola e participar na vida da escola” ou a cooperação com “os professores no desempenho da sua missão pedagógica, em especial quando para tal forem solicitados, colaborando no processo de ensino dos seus educandos”.

É também da responsabilidade do encarregado de educação a própria matrícula. E são também os encarregados de educação que têm de “comparecer na escola sempre que tal se revele necessário ou quando para tal for solicitado”.

Quais as prioridades na matrícula definidas na lei para o ensino básico?

A lei — através do despacho de matrículas — define oito prioridades para a matrícula ou renovação de matrícula no ensino básico.

Os dois lugares cimeiros são ocupados pelos alunos com necessidades educativas especiais de caráter permanente que exijam condições de acessibilidade específicas ou respostas diferenciadas e por aqueles que exigem um currículo específico individual. Em terceiro lugar, na ordem de prioridades, aparece a frequência no ano letivo anterior do mesmo estabelecimento de ensino. O quarto critério é ter um ou mais irmãos matriculados no referido estabelecimento de ensino.

Inspeção Geral da Educação abriu inquérito para apurar existência de “irregularidades no processo de matrículas”

O quinto lugar desta lista de prioridades é ocupado pelo critério que tem levantado mais problemas desde sempre: a residência. Ou seja, um aluno cujo encarregado de educação resida, “comprovadamente, na área de influência do estabelecimento de ensino” tem prioridade sobre outro que não resida na área de influência.

A frequência, no ano letivo anterior, da “educação pré-escolar em instituições particulares de solidariedade social na área de influência do estabelecimento de ensino ou num estabelecimento de ensino do mesmo agrupamento de escolas, surge em sexto lugar na ordem de prioridades, “dando preferência aos que residam comprovadamente mais próximo do estabelecimento de ensino escolhido”.

Só depois destes surge o critério do local de trabalho do encarregado de educação pertencer à área de influência da escola e, por último, a idade dos alunos: têm prioridade os “mais velhos, no caso de matrícula, e mais novos, quando se trate de renovação de matrícula, à exceção de alunos em situação de retenção que já iniciaram o ciclo de estudos no estabelecimento de ensino”.

Sendo certo que “podem ser definidas no regulamento interno do estabelecimento de educação e de ensino outras prioridades e ou critérios de desempate” entre alunos, respeitando as prioridades estabelecidas por lei.

Quais os critérios de prioridade estabelecidos para o ensino secundário?

Os critérios são essencialmente os mesmos do ensino básico, com algumas nuances. Por exemplo, o sexto artigo deixa de fazer referência à educação pré-escolar e, por conseguinte, à frequência em IPSS. O artigo 7.º — do local de trabalho — prevê também a possibilidade do local de trabalho ser do próprio aluno e o critério da idade desaparece, sendo substituído por outra mais abrangente: “Outras prioridades e ou critérios de desempate definidos no regulamento interno do estabelecimento de educação e de ensino.

O que acontece se a criança não ficar colocada na escola escolhida?

No ato de matrícula, o encarregado de educação ou o aluno, quando maior, indica, por ordem de preferência, até cinco estabelecimentos de educação ou de ensino, cuja escolha de frequência é a pretendida. E se não ficar na primeira prioridade vai descendo para as seguintes.

Segundo o despacho normativo das matrículas em vigor, “sempre que se verifique a inexistência de vaga” em todas as escolas indicadas nas preferências, “após a aplicação das prioridades”, o pedido de matrícula ou a renovação de matrícula “fica a aguardar decisão no estabelecimento de educação e de ensino indicado como última escolha, remetendo este o referido pedido aos serviços competentes do Ministério da Educação, para se encontrar a solução mais adequada“.

Para os pedidos apresentados após o início do ano letivo e no caso em que o aluno não obtenha colocação nas escolas pretendidas, o Encarregado de Educação deve dirigir-se à Direção de Serviços da Região e solicitar uma vaga na rede pública, lê-se ainda na página da Direção Geral de Estabelecimentos Escolares.

Como reclamar e que sanções podem ser aplicadas aos eventuais infratores?

Qualquer reclamação pode ser apresentada junto da escolas mas, sobretudo, junto das Direções Regionais de Educação. E em caso de suspeita de irregularidades ou mesmo fraude, os pais podem enviar uma carta ao Provedor de Justiça, que em 2016 recebeu 36 queixas, ou para a Inspeção Geral de Educação e Ciência (IGEC).

Também os diretores de escola podem enviar para a IGEC suspeitas de irregularidades no ato da matrícula. Mas Filinto Lima, da ANDAEP, desconhece “que os infratores sejam responsabilizados civil ou criminalmente”. Mas mesmo que haja penalizações, “seria pior a emenda que o soneto”, acredita o professor e diretor. “Imagine que a confirmação da fraude chegava a meio de um período letivo. Íamos mudar os alunos de escola? Não seria bom para ninguém. Nem o pai que tem razão quereria que o seu filho, que já estava integrado noutra escola, mudasse”.

Provedor de Justiça recebeu 36 queixas relacionadas com matrículas escolares em 2016

A verdade é que, perante as notícias dos últimos dias, o Ministério da Educação informou já que a Inspeção-Geral de Educação e Ciência (IGEC) abriu um inquérito para apurar a existência de irregularidades.

Inspeção Geral da Educação abriu inquérito para apurar existência de “irregularidades no processo de matrículas”

As questões que foram levantadas até ao momento referem-se a alegadas irregularidades na aplicação do que está disposto no despacho das matrículas e não ao conteúdo do que está definido”, esclarece o Ministério da Educação, que acrescenta que irá avaliar “no final do processo conduzido pela IGEC, a necessidade de aplicar eventuais medidas de reforço para limitar potenciais abusos”.

O que sugerem os encarregados de educação?

Os pais mais indignados com aquilo que afirmam ser uma fraude nas matrículas já lançaram duas petições públicas a sugerir alterações aos critérios de prioridade na colocação dos alunos. Os signatários da petição “Chega de Moradas Falsas” e do “Filipa é de todos” defendem, desde logo, uma alteração à forma de comprovativo de morada, dando prioridade à confirmação da morada fiscal do aluno e só depois a morada do encarregado de educação.

Filinto Lima, da ANDAEP, acredita que esta alteração “seria uma grande ajuda”. “Era um grande passo para daqui por um ano ser um não assunto. E ajudava muito a nossa vida. Não é vida fácil para os diretores também.”

A Petição “Chega de Moradas Falsas” defende ainda que “o encarregado de educação seja quem exerce o poder parental ou, em situações excecionais devidamente fundamentadas e validadas pela escola, a pessoa a quem foram delegadas essas competências” e que “não seja possível alterar o encarregado de educação durante o ano letivo, salvo por motivos de força maior comprovados (falecimento, doença, alteração do poder parental, etc)”.

Já a petição “Filipa é de todos” pede também que seja feita a “revisão do mapa que distribui os alunos pela escolas de Lisboa” e que se adicione “como elemento de prioridade nas matrículas, os avós”.