Nada. Não temos nada. E é precisamente quando temos tudo que o percebemos. Meio complicado isto, não é? Descansemos: os Arcade Fire fizeram um disco para explicar isto ao mundo (ou para tentar). Eles que têm tudo querem dizer que não têm nada, que talvez seja melhor não ter coisa nenhuma para ir à procura daquilo que realmente interessa. E o que é que é de facto importante? Vá lá, estavam mesmo à espera que essa resposta estivesse nas canções? Isto é ironia rock’n’roll. A maior das ansiedades do século XXI traduzida em música de festa resgatada, em parte, aos setentas e oitentas. Disco sound mais new wave e etc. numa garagem com morada no novo milénio (e punk rock “de facto” pelo meio, que isto não é só brilho e farra). Se temos tudo não temos coisa nenhuma. Se estamos em 2017 façamos a festa como se fosse 1977. Se a humanidade (nossa, quanto exagero) espera que os Arcade Fire sejam sempre a redenção a cada novo disco, nada melhor que apontar o dedo sem apresentar uma solução. A ideia é bonita mas não basta para tornar este disco valente.

“Everything Now”, dos Arcade Fire (Sony Music)

Mas quem são os Arcade Fire para atirarem pseudo-lições sobre qualquer tema? Bom, são gente com opinião e talento para a transformar em arte e isso deixa-os em vantagem. E convenhamos que esta coisa de discutir os porquês da vida no meio das canções não é nova com estes amigos. É que nem um bocadinho. Recordemos coisas boas de 2004: o álbum era Funeral, a canção era “Wake Up” e o vocalista Win Butler, um eterno garoto dramático, gritava, quase que chorava:

“Children wake up /
Hold your mistake up /
Before they turn the summer into dust”

Tem sido sempre isto, o dilema de crescer para não fazer nada que jeito tenha, a angústia de ser adulto para ser apenas mais um e perder tudo o que em tempos foi sonho ou coisa bonita que pairava pelo campo da possibilidade. O que o mundo nos faz, o que a religião nos faz, o que fazemos uns aos outros, com os Arcade Fire sempre andámos por aqui.

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Agora, com Everything Now, a banda vai pelo mesmo caminho mas a partir de outro ponto de vista: quem tudo quer tudo perde, e em formato banda larga. É mais ou menos isto. Este disco quer ser a banda sonora oficial da angústia da modernidade, venha ela de onde vier. Mas no final das contas, este novo álbum não consegue ocupar o espaço que pretende porque nem todas as canções têm a capacidade de gerar nervoso miudinho ou de o acalmar.

Começam com “Everything Now” (“tudo agora”) e acabam com “We Don’t Deserve Love” (“não merecemos o amor”). Ou seja: o que raio andamos nós a fazer que queremos tudo a todo o momento, simplesmente porque, de repente, ter tudo é possível? Construímos um monstro, sobretudo digital, que consumimos e nos consome. Tudo verdade, tudo inegável. Mas também foi graças a esse monstro, a esse desejo de ubiquidade, a esse sonho de querer ser já, de querer ter agora, de querer chegar sempre que os Arcade Fire se tornaram numa das marcas mais importantes, influentes, consistentes e desafiantes da música pop dos últimos, vá, 15 anos, mais coisa menos coisa. Por isso é que tudo isto parece tão sentido como parece irónico. E por isso, também, é que importa dar-lhe atenção. Até porque no meio de tanta atitude, conceito, imagem e cuidado nos detalhes da promoção, este disco pode bem nascer de alguma insegurança. Algo como “agora que temos tudo, para onde vamos?”.

Os Arcade Fire fazem a festa a partir do drama, compõem choradeiras para serem cantadas em estádios, no meio da loucura. Digitalizam a dor para que possa ser replicada vezes sem conta. A canção que dá nome ao disco vai ficar na história como uma das melhores malhas dançantes de 2017, a gerar frases como “então mas isto parece Abba”. Raios, por isso é que é incrível. “Signs of Life” é hard disco a caminhar para o hip hop de má vizinhança e explica o essencial sobre a raça humana: sabemos o que está mal mas ainda assim repetimos a mesma asneira, “so we do it again”. E “Creature Comfort” tem sintetizadores com grão analógico a marcar o ritmo de gravidade zero para mais aforismos:

“On and on, I don’t know what I want /
On and on, I don’t know if I want it /
Well if you’re not sure better safe than sorry”.

Quer isto dizer: se não sabes bem o queres, deixa-te estar; se tens dúvidas sobre que caminho escolher, fica quieto; se ninguém se mexer, ninguém se magoa. Mas também é um aviso para fazer exatamente o contrário.

Everything Now arranca com estas três canções porque é assim que se começa bem um disco. É assim que se agarra a multidão. Os Arcade Fire fizeram um álbum sobre os males do mundo 3.0 (talvez já estejamos mais à frente nestes números…) onde tudo está em toda a parte a todo o momento. Por isso o melhor mesmo é prender atenções antes que a primeira distração entre em campo e estrague tudo, que é o que costuma acontecer. E esta técnica de lançar um isco perfeito abre depois espaço para temas menos imediatos, menos consensuais e que só podiam surgir de uma banda que se divertiu à bruta no estúdio. Uma banda que fez canções para apagar e começar de novo, que convidou boa gente para o lugar de produção, gente com ideias, dicas, bom ouvido e boa técnica (por exemplo? Thomas Bangalter, dos Daft Punk, Steve Mackey, dos Pulp, ou Geoff Barrow, dos Portishead ou dos Beak).

A verdade é que o miolo do disco anda à deriva. “Peter Pan” e “Chemistry” são temas OK, certo, vamos lá ouvir isto mas se aqui não estivessem não se perdia nada de especial. E “Infinite Content”, que aparece a dobrar, entre a distorção e a balada à maneira de Neil Young, vale só pelo jogo de palavras e pela boa galhofa que é dividir a mesma canção em duas com um “under_score” a marcar a diferença. Que reinadios estes tipos. E que boa maneira de comprovar que na maioria das vezes não basta um conceito para suportar uma canção (na verdade, nunca basta).

Com “Electric Blue” (Régine, calma contigo!) e “Good God Damn”, os Arcade Fire tentam apanhar-nos outras vez pelas ancas — sítio onde, já sabíamos, reside boa parte da felicidade humana — mas vacilam forte e feio. Já o final é feito em formato bom-mas-bom. “Put Your Money on Me” e “We Don’t Deserve Love”. A primeira é febre de sábado à noite com psico-ácido à mistura, que ideia saborosa para falar de desespero; a segunda é um adeus melancólico e sintetizado com mais de seis minutos. Ambas servem como um purgatório, um mea culpa para que ninguém se vá embora de consciência pesada. Há salvação à vista se reconhecermos as nossas falhas, irmãos. E começam quase todas aqui: entre o arrependimento, a confiança e o amor.

Everything Now mostra uns Arcade Fire que têm tudo mas que, ao mesmo tempo, não estão satisfeitos — ou então mostra só como é possível criar um conceito sedutor para suportar um álbum inteiro quando ninguém sabe para onde ir. E mostra uma banda que sabe gozar com ela própria. Lançaram há dias a notícia de que haveria um dress code para o concerto de apresentação do disco em Nova Iorque. Afinal tudo podia ser “fake news”. Claro que podia. O “tudo agora” do título não é só tecnologia nem internet, não é só smartphones e fibra de muitos megas, consumismos e cagança de rockstar. Mas nas canções não vai muito mais longe (e que não venha ninguém dizer que estes tipos não querem passar uma mensagem): “Sim sim, isso do mundo digital na palma da mão é uma chatice, mas e agora?” Ainda assim, boa gente, um pouco de bom senso: esta malta não tem obrigação de salvar ninguém, estamos entendidos?

Everything Now é capaz de ficar na história como “aquele” disco dos Arcade Fire e pode não agradar a muitos fãs (a expectativa é uma armadilha tramada, já se sabe). Mas é um grandessíssimo slogan para todas as coisas da existência no geral (já os Smiths o usavam). Nas fotos de promoção, os seis músicos aparecem com casacos estampados com as iniciais “EN”. Brilhante jogada pop, usar duas palavras com tanto potencial de venda como de filosofia de vida. Já agora, onde é que se pode comprar um desses agasalhos?