Foi no inverno de 2013 que Caroline Lee viu pela primeira vez Mr. No Ears. Estava de férias em Albufeira e, durante um passeio matinal pela Praia do Peneco, reparou no charmoso gato branco deitado ao sol. Tinha perdido as duas orelhas e tinha apenas um dos olhos, mas era sem dúvida o gato mais carismático da colónia da praia de Albufeira. “Demo-nos logo bem”, contou ao Observador. Passou a visitá-lo todos os dias, sem exceção, até que teve de regressar a Inglaterra, onde vivia. Uma vez em casa, não conseguiu tirar da cabeça o novo amigo de quatro patas e procurou estabelecer contacto com os seus tratadores em Portugal. Foi assim que, em novembro desse ano, conheceu Lesley Normington, fundadora da associação Amigos dos Gatos do Algarve (AGA), e muitas das histórias que viria a incluir no livro Saudades Mr. No Ears, publicado neste mês de julho, onde relata a vida do gato mais famoso do Algarve.

Caroline Lee descobriu a AGA através da Angloinfo Algarve, uma plataforma com informações para ingleses residentes no Algarve, enquanto procurava por “associações de proteção de gatos de rua”. A associação tinha sido fundada anos antes por Lesley Normington, uma inglesa que vivia em Albufeira desde 1992, com o único objetivo de ajudar os gatos de rua. A colónia da Praia do Peneco, à qual pertencia Mr. No Ears, era uma de muitas que Lesley e restantes voluntários da AGA tinham a seu cargo. O amor que Lesley e Caroline tinham pelos animais — e, especialmente, por Mr. No Ears — acabou por aproximá-las. “Foi o início de um contacto quase diário entre nós — entre a Lesley que estava Portugal e eu no Reino Unido”, relatou Caroline Lee que, pouco tempo depois, acabou por ajudar na criação da página de Facebook da AGA e do próprio Mr. No Ears, que tantos problemas viria a dar.

A página da AGA surgiu no final de 2013. “Decidimos começar uma página de Facebook, que criei e administrei, para manter os nossos ‘amigos’ do outro lado do oceano informados sobre o trabalho da AGA, uma vez que a associação tinha sido fundada apenas com o apoio de pessoas que viviam fora de Portugal”. Foi um sucesso quase instantâneo e Mr. No Ears era “estrela principal”. Dada a popularidade do animal, Caroline achou que seria boa ideia criar-lhe também uma página na rede social, que rapidamente ganhou centenas de fiéis seguidores. Pouco antes da sua desativação, na sequência do alegado rapto do gato sem orelhas, esta contava com mais de 24 mil likes “do mundo inteiro”. Foi graças a ela que Mr. No Ears, bem conhecido por aqueles que frequentavam a Praia do Peneco, se transformou numa estrela internacional, com admiradores espalhados pelos quatro cantos do mundo.

Passados quatro anos, Caroline Lee admite que foi a exposição provocada pelo Facebook que tornou Mr. No Ears famoso. “A apresentação da vida cheia de obstáculos de um gato de rua com um olho, sem orelhas, juntamente com mensagens importantes sobre o direito à vida dos gatos que vivem em liberdade, mexeu com as pessoas, emocionou-as.” Além disso, Mr. No Ears era naturalmente um gato carismático, “especial”, como Lesley gostava tanto de salientar. “As pessoas criam uma ligação com ele”, disse a fundadora da AGA ao Observador em outubro de 2016, cerca de um ano antes de morrer. Foi isso que aconteceu com ela e também com Caroline, anos depois.

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Mr. No Ears nasceu no cimo da falésia da Praia do Peneco, em Albufeira. Foi aí que viveu até ao seu desaparecimento, em 2015 (Fotografia: Facebook da Amigos dos Gatos do Algarve — AGA)

Mas a fama tem sempre um lado negro. Em setembro de 2015, Mr. No Ears desapareceu da sua colónia, na Praia do Peneco. Os voluntários da AGA deram por sua falta a 11 de setembro e, sete dias depois, Lesley Normington apresentou uma queixa por furto no Subdestacamento Territorial da GNR de Albufeira: o gato teria sido levado de Albufeira por um casal da Lousada, Andreia e Paulo, que o teriam utilizado para angariar fundos através de uma página criada no Facebook. A queixa inicial foi rapidamente arquivada (Lesley disse às autoridades que o gato não pertencia à AGA e, por conseguinte, a queixa por furto não fazia sentido), mas o caso acabou em tribunal. Contudo, apesar das certezas de todos os que colaboram com a AGA, nunca ficou provado que tinham sido de facto Andreia e Paulo a levarem Mr. No Ears (apesar de estes terem admitido ter o animal em sua posse) do seu muro predileto em Albufeira.

Para Caroline Lee, a história de Mr. No Ears foi “uma lição amarga”. Apesar das boas intenções, a página que criou no Facebook em 2013 para alertar para a situação dos gatos de rua do Algarve acabou por elevar “um simples gato” aos “píncaros da fama”, tornando-o num animal “desejado” e ”causando, em última instância, a sua morte e, julgo, a morte da sua guardiã humana, Lesley Nortington”. Quem convivia de perto com Lesley — que tinha um grande carinho por todos os gatos de rua mas, especialmente, por Mr. No Ears –, admite que a fundadora da AGA sofreu muito com o desaparecimento do famoso gato sem orelhas. Lutou até ao fim para que o animal fosse restituído à Praia do Peneco, mas acabou por morrer a 25 de novembro, vítima de cancro, sem que tivesse a alegria de voltar a ver Mr. No Ears sentado junto à falésia.

Apesar do triste desfecho, Caroline Lee, hoje sem qualquer ligação à AGA, acredita que há uma lição “positiva” que se deve tirar do caso de Mr. No Ears. E mais importante: que a sua história deve ser lembrada, contada. Foi por essa razão que decidiu escrever um livro. Saudades Mr. No Ears está à venda (numa versão apenas em inglês) na Amazon.co.uk desde 27 de julho e, de acordo com a inglesa, já foram encomendados perto de 300 exemplares. Só nos primeiros quatro dias foram vendidos 58 (existe um problema com o envio dos livros que a Amazon está, de momento, a tentar resolver e, por isso, ainda só foi possível aos que residem no Reino Unido adquirir uma cópia da obra). A versão em português está neste momento a ser finalizada e, segundo Caroline Lee, deverá estar disponível dentro de alguma semanas.

A história de Mr. No Ears, o famoso gato sem orelhas

Mr. No Ears, o famoso gato sem orelhas de Albufeira, nasceu no cimo da falésia da Praia do Peneco em 2010, no seio de uma colónia de gatos selvagens. Carismático, costumava pedinchar comida aos turistas que normalmente enchem a esplanada junto à praia e, ao final da tarde, deitar-se sobre o muro branco junto à falésia, um hábito que lhe fez ganhar o título de “Rei Leão de Albufeira”.

O seu companheiro de aventuras era o seu irmão Frankie, assim chamado por Lesley por causa dos seus olhos azuis, como os de Frank Sinatra. Como escreveu Caroline Lee no seu livro, não era costume dar um nome aos gatos de rua. Contudo, a frequência com a colónia da Praia do Peneco era visitado pelos voluntários da AGA levou a que estes acabassem por dar nomes a quase todos os que ali viviam. Ao contrário de Frankie, Mr. No Ears não foi a primeira escolha. O famoso gato sem orelhas chegou a chamar-se Lucky e até Branquinho, como o pai (conhecido como Branquinho the Great entre as tratadoras inglesas). Foi Suzanne — “uma grande apoiante da causa animal no Reino Unido”, que visitava regularmente Albufeira –, que acabou por se lembrar do nome pelo qual o gato acabaria por ficar famoso: Mr. No Ears.

O nome era literal. Além de ter nascido com um só olho, Mr. No Ears acabou por ficar sem as suas orelhas na sequência de uma dermatite solar, muito comum nos gatos de cor branca. Nos primeiros anos de vida, os problemas de saúde de Mr. No Ears eram tal que se pensou mesmo em eutanasiá-lo, como conta Caroline Lee no seu livro. “Falámos sobre eutanasiá-lo já que as suas orelhas tinham sido queimadas pelo sol. Como era um gato de rua, mesmo que removêssemos as suas orelhas, havia uma boa hipótese de que se voltassem a queimar. Depois, como era um gato semi-selvagem, seria difícil capturá-lo outra vez ou eutanasiá-lo. Também havia a possibilidade de que, se não removêssemos tecido suficiente, o cancro podia voltar a crescer outra vez”, contou Sarah, a veterinária que o tratou, citada em Saudades Mr. No Ears.

Mr. No Ears passava os dias deitado no muro branco, junto à falésia. O hábito valeu-lhe a alcunha de “Rei Leão de Albufeira” (Fotografia: Facebook da Amigos dos Gatos do Algarve — AGA)

Na altura, a veterinária não mostrou muitas esperanças de que o gato pudesse sobreviver, mas os voluntários da AGA não estavam dispostos a desistir de Mr. No Ears. Lyn, a sua fiel tratadora, arranjou forma de lhe administrar os antibióticos, levando-o para sua casa. Contra todas as probabilidades, Mr. No Ears acabou por sobreviver e, de acordo com os relatos, na altura do seu desaparecimento gozava de boa saúde. Assim, com o passar do tempo, o gato branco sem orelhas foi conquistando o carinho de todos os que frequentavam a Praia do Peneco. Um animal “especial” e carismático — como o descrevia Lesley Normington–, Mr. No Ears foi conquistando o carinho de todos os que frequentavam a Praia do Peneco. Com a criação da sua página de Facebook, transformou-se definitivamente numa espécie de vedeta local. Os turistas que visitavam Albufeira, e que seguiam as suas aventuras através da rede social, começaram a fazer questão de conhecer o charmoso gato branco sem orelhas e de lhe tirar fotografias quando estava deitado ao sol. Até que, em setembro de 2015, desapareceu. Sem deixar rasto.

Uma história que tinha de ser contada

Caroline Lee lembrou-se de escrever um livro sobre a história de Mr. No Ears quando, em março deste ano, um cadeado com as palavras “Saudades, Mr. No Ears” foi colocado no cimo da falésia da Praia do Peneco. “Como tinha criado a página de Facebook, tinha acesso a todos os acontecimentos diários da sua vida. E, claro, a Lesley foi uma grande fonte de informação.” Durante as muitas conversas que mantiveram quase diariamente durante três anos, Lesley contou a Caroline histórias dos “primeiros dias” de Mr. No Ears na Praia do Peneco, que a maioria dos seus fãs desconhecia.

“Depois surgiu o Fan Club & Friends of Mr. No Ears, um grupo do Facebook de amigos do muito amado Mr. No Ears. O grupo tornou-se um ponto central para todos os amigos que procuravam consolo e apoio depois da tentativa judicial falhada de tentar trazê-lo de volta e das notícias chocantes que o davam como morto”, explicou ao Observador. “Os seus amigos queriam que a sua história fosse contada. Escrever um livro inspirador e positivo sobre a sua vida pareceu-me a maneira perfeita de unir o grupo e canalizar toda a raiva e frustração para algo construtivo.”

Foi por essa razão que decidiu não abordar nenhum dos eventos que levaram ao seu desaparecimento, em setembro de 2015, e ao caso judicial que se seguiu. Este surgem referidos apenas brevemente no prefácio, intitulado “Rest in Peace Mr. No Ears”, e já perto do final da obra, dedicada a Lyn, tratadora de Mr. No Ears e “anjo da guarda de todos os gatos de rua de Albufeira”. “Houve muita negatividade e tristeza associadas ao Mr. No Ears e aos acontecimentos que levaram à sua morte. Vi o que isso fez à Lesley, como a destruiu. Era importante para mim contar a história positiva, feliz, normal e às vezes engraçada da sua vida com a qual muitas pessoas não estava familiarizadas”, disse ao Observador.

Capa e contracapa da versão inglesa de Saudades Mr. No Ears. A edição portuguesa está para breve (Imagem cedida por Caroline Lee)

Para financiar o livro, Caroline lançou uma campanha de angariação de fundos online, através da plataforma Kickstarter. Esta decorreu entre 15 de maio e 5 de junho e durante esse período, foram angariadas 3.645 libras (mais de quatro mil euros), disponibilizadas por 68 financiadores. O suficiente para conseguir avançar com o projeto. O livro foi posto à venda no dia 27 de julho e já contava com várias encomendas feitas previamente. As reviews deixadas na Amazon e no Facebook não podiam ser mais positivas: ninguém parece ficar indiferente à história de Mr. No Ears.

Saudades Mr. No Ears, composto por pouco mais de 120 páginas, está dividido em 18 capítulos que percorrem vários episódios da vida do gato sem orelhas. Além das histórias ouvidas em primeira mão por Caroline, inclui vários testemunhos de amigos e admiradores em Portugal, mas também em outras partes do mundo. Nas últimas páginas existe um apêndice que ajuda a explicar alguns termos mais técnicos relacionados com a história do animal. Saudades Mr. No Ears está à venda por 7,99 libras (perto de 9 euros) e as receitas (aproximadamente 69% do preço de venda, segundo a autora) serão usadas para pagar a veterinários portugueses que trabalham com gatos de colónias.

Certa de que esta é uma história que “tinha de ser contada”, Caroline Lee acredita que o mais importante é retirar dela uma mensagem positiva e valiosa: que “Mr. No Ears era uma alma muito especial” e que “as vidas dos gatos de rua importam”. “A sua memória viverá para sempre.”