Morres aos setenta e três anos, uma boa idade para partir deste mundo, sobretudo quando, como tu, já se viveu quase tudo. Foste jovem, garboso e aguerrido, filho dos teus pais e pai dos teus filhos, amaste mulheres belas e fulgurantes, tuas iguais na luta por um lugar ao sol, o sol do Texas que descreves como ninguém, e o outro, feito de luzes da ribalta. Vejo o teu rosto coberto de rugas, já sem a luz de tempos idos (porque será a luz do olhar a primeira coisa a morrer?), e pergunto-me se as rugas não farão parte da tua imagem desde sempre.

Morreu o ator e dramaturgo norte-americano Sam Shepard

Alguns dos teus filmes como ator desfilam à cavalgada na minha mente: “Os Eleitos”, “Frances”, “Crimes do Coração”, “Dossier Pelicano”, “O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford”, “Estrela Solitária”. Escreveste a meias o argumento de “Paris, Texas” e a tua marca ficou lá, inscrita na rugosidade dos diálogos. Aos meus olhos, tu és mais real do que o próprio Chuck Yeager, primeiro dos primeiros a quebrar a barreira do som. Quando algum desses filmes passa diante de mim, no pequeno ecrã, não resisto a andar para trás e a rever-te, imperial e enigmático, eternamente fascinante.

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Falo dos filmes, que ficam mais no olhar, mas, para mim, tu és sobretudo escritor. Crónicas Americanas, O Grande Sonho do Paraíso, Atravessando o Paraíso, Loucos por Amor (peça que li e vi no Teatro Aberto). Cito quase de cor. Os teus contos, as obras publicadas em português e as coletâneas de peças por traduzir avolumam-se na estante; duas delas, repletas de magníficas peças de teatro, encimam mesmo a pilha dos livros que dormem a meu lado. O Pulitzer por Buried Child foi mais do que merecido, mas que acrescentam os prémios à vida das palavras que ecoam nos nossos ouvidos? Palavras que dão forma a um território do bom velho oeste e não só, povoado de sombras e cinzas, de heróis em fuga, angustiados, à procura de um clarão no meio das trevas.

“Um homem a brincar aos cowboys”, disse de ti Patti Smith num bonito poema. Sem ti, dear Sam, “esta vastidão à nossa volta” ficou mais vazia.

Maria João Lourenço é tradutora