Jean Loup Passek nunca veio ao festival de cinema Filmes do Homem. A doença impediu-o de viajar até Melgaço e de ver parte da obra que construiu na vila minhota. O cinéfilo francês, que morreu em dezembro do ano passado, conhecia o festival, mas de longe, pela voz de amigos e conhecidos. “Ele gostava de saber que havia um festival que tinha esta relação forte entre a realidade profunda de um país, a sua gente, as suas tradições e o cinema. Para ele, era uma felicidade”, diz Bernard Despomadères, amigo e curador da sua coleção no Museu de Cinema de Melgaço. Depois desta obra, o legado vai evoluir para um centro documental com o seu nome, a erguer na mesma localidade.

Hoje, nem todos os melgacenses saberão quem foi Passek ou como começou o seu projeto de vida com Melgaço. Mas as obras terão a responsabilidade de preservar essa memória, segundo o amigo: seja o museu com a sua coleção, que terá “milhares de fotografias, cartazes, objetos e cheques assinados por estrelas do cinema como Sharon Stone”; o prémio do festival Filmes do Homem que tem carimbado o nome do cinéfilo francês; ou a quantidade de cineastas portugueses que chegaram até França pelas suas mãos, nomeadamente no Festival Internacional de Cinema de La Rochelle, do qual Jean Loup Passek era diretor. Manoel de Oliveira, João Mário Grilo, João Botelho e Luís Filipe Rocha foram alguns dos “sortudos”.

Foi na década de 80 no Porto que Bernard Despomadères conheceu Passek. Tal como muitos outros rostos ligados à cultura cinematográfica, admirava-o à distância e sabia quem era o cinéfilo francês, que dizia ter o coração em Portugal, embora residisse em França. Enquanto foi responsável pela área cultural do Instituto Francês na Invicta, Bernard — também ele francês a viver “há uma eternidade” em Portugal — convidou Passek para alguns eventos e colocou-o no circuito dos festivais. Jean Loup foi membro do júri no festival de cinema Fantasporto.

Uma relação que se mantinha (inicialmente) profissional evoluiu para uma amizade de dezenas anos. Bernard e a esposa Estela acompanharam os últimos dias de Passek e ouviram também os seus pedidos.

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“Antes de morrer fez um pedido: ‘Queria no meu caixão duas coisas que quero levar para outros países'”.

Esses dois objetos eram a Medalha da Cidade de Melgaço e a Medalha de Mérito Cultural atribuída pelo Governo português em setembro do ano passado na Cinemateca Portuguesa. E assim foi. Com o casal ficou também a responsabilidade de coordenarem o Museu de Cinema em Melgaço.

Jean Loup Passek criou uma relação afetiva com Melgaço. © José do Carmo/Global Imagens

O encontro com os portugueses na fronteira de São Gregório

Na década de 70, Passek queria fazer um filme sobre imigração em França. “Comprou uma máquina de filmar e começou a trabalhar sobre o que queria escrever”, relata Bernard Despomadères. Esbarrou no conselho de um amigo nas ruas de Paris, que lhe disse que o ideal seria ir até aos arredores da cidade das luzes, ao “bidonville”, um bairro de lata onde vivia a maioria dos imigrantes.

Fora do centro, e com “cara de burguês”, Jean Loup pôs-se à conversa com alguns portugueses, e foi convidado por um deles para jantar. A habitação de condições precárias não impediu a hospitalidade. Receberam o cinéfilo francês com tudo o que tinham, na mesa e no pensamento.

“Saiu de lá muito tarde, mas surpreendido”, diz o amigo. “Pessoas extraordinárias, pobres, mas partilharam comigo tudo o que têm”, recorda Bernard as suas palavras. Escusado será dizer que voltou ao “bidonville”.

Voltar a casa de um português significou o convite mais exigente. No dia 3 de agosto daquele ano, às 15h, Passek tinha de estar na fronteira de São Gregório, em Melgaço entre Portugal e Espanha e aí visitaria a antiga freguesia de Paços. Jean Loup tinha o mês anterior, julho, todo ocupado com o festival de cinema de La Rochelle. “Sendo diretor do festival, o último dia nunca terminava para ele”, aponta Bernard. O cinéfilo disse que sim, mas sem grandes compromissos de voltar a reaver aquelas pessoas.

O certo é que chegou o dia e sem férias programadas, Passek atravessou França e Espanha de carro — não viajava de avião — e reencontrou os amigos portugueses. “Lá encontrou uma espécie de paraíso perdido”, refere o amigo. Melgaço iria representar uma paixão longa. Mais tarde, e devido às boas relações que mantinha na vila — e com um “pouco de sorte” — decidiu instalar ali a coleção cinematográfica construída ao longo de 30.

A autarquia recebeu-o de braços abertos e na sessão de apresentação de festival Filmes de Homem deste ano, Manoel Batista, presidente da Câmara Municipal de Melgaço, revelou a intenção de criar o Centro Documental Jean Loup Passek, com o propósito de “deixar a marca do cinema bem vincada” e de desenvolver outras atividades com recurso ao espólio do cinéfilo. Uma das condicionantes que o Museu do Cinema de Melgaço hoje enfrenta é a elevada quantidade de documentos de arquivo para o seu espaço tão pequeno.

Para Bernard Despomadères, “a única maneira de fazer com que o museu viva e cresça é abrir o museu ao exterior”. A criação de exposições itinerantes dentro de Portugal e no estrangeiro não está colocada de parte. O trabalho com escolas e outras entidades culturais está também a ser pensado. Este domingo, termina o festival Filmes do Homem e começa outro “cinema”, o da exposição do Museu de Cinema, chamado “A idade de ouro do cartaz de cinema polaco”. Para realce do sangue eslavo que Jean Loup Passek tinha, graças ao seu pai.

No entanto, a recordação do cinéfilo francês para Bernard só se pode fazer de uma forma: com uma lição. “É preciso sonhar, é preciso ter um projeto. Isso é lição de todos os grandes homens: ter sempre um projeto de vida”. Passek teve-o em parte em Melgaço.