Bolt. Quatro letras, quatro perspetivas. O fenómeno físico que não estava talhado para correr os 100 metros mas que se tornou o melhor de sempre com uma pitada de genética. O fenómeno desportivo de quem cresceu a ser o melhor mas não queria nada com o atletismo. O fenómeno mediático que era incapaz de deixar alguém indiferente na hora da chegada ou da despedida por ser um eleito do povo e para o povo. E o fenómeno, simplesmente o fenómeno, que foi acumulando listas de sucessores mas só teve um rival até este ano que era ele próprio. Dez anos depois das duas pratas nos Mundiais de Osaka, sai de cena com oito ouros olímpicos e 11 em Campeonatos do Mundo. Em 2017, em Londres, falhou a medalha nos 4×100 metros depois do bronze nos 100 metros e não conseguiu bater o recorde de 14 medalhas em Mundiais da compatriota Merlene Ottey.

A partir de hoje, acabou. No final da prova, o jamaicano dispensou a cadeira de rodas e saiu meio a coxear de pista. Não chorou, mas fez chorar. Foi aquele cenário que nem nos piores pesadelos se podia adivinhar. Dramático, mesmo. Provavelmente, se for como nos outros anos, Usain Bolt vai tirar uns dias para si; depois, começa a segunda vida daquele que é o maior velocista que o atletismo mundial viu. Dez anos depois, tem outros tantos caminhos. Uns mais prováveis do que outros, é certo. Mas com ele, convém nunca antecipar resultados. Provavelmente, onde estiver, vai ganhar. E opções parecem não faltar.

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Bolt, o jogador de futebol

Podia pensar-se que era apenas uma graçola, um sonho de criança, uma aspiração sem futuro. Mas a verdade é que, em maio deste ano, Usain Bolt voltou a reafirmar essa vontade de jogar futebol ao mais alto nível. “Rooney? É um grande jogador mas não é Cristiano Ronaldo, Messi ou Neymar. Não está entre os melhores dos melhores, mas coloco-o entre os 50 melhores futebolistas da atualidade. Tenho a ambição de entrar também nesse top-50. Se tiver oportunidade de jogar regularmente, marcarei, pelo menos, 20 golos por época. Amo futebol e poder jogar é algo que está na minha mente há muito tempo”, disse à revista So Foot.

E que hipóteses existem? Logo à partida, uma interna: Theodore Whitemore, selecionador interino da Jamaica, abriu a porta à hipótese de Bolt jogar futebol pela Jamaica, tendo em vista o Mundial de 2018. Depois, há uma espécie de compromisso via Puma que o jamaicano poderá treinar três/quatro dias com o Borussia Dortmund. Nessa mesma entrevista, a uma publicação francesa, admitiu até jogar na Ligue II, desde que fosse um conjunto ambicioso. Mas o grande sonho era mesmo um dia poder representar a sua equipa de sempre, o Manchester United… Para já, a versão Usain Bolt jogador de futebol só existe virtualmente no PES. E tem jeito. Mais do que mostrou num vídeo em que treinou com o conjunto amador do Saint Jean de Beaulieu…

Bolt, o comentador de atletismo

Denise Lewis foi campeã olímpica e ganhou medalhas em Mundiais e Europeus no heptatlo; Colin Jackson ganhou a prata nos 110 metros barreiras dos Jogos de 1988 e somou 17 medalhas entre Mundiais e Europeus ao Ar Livre ou em Pista Coberta; Michael Johnson quase dispensa apresentações: quatro ouros em Jogos nos 200, 400 e 4×400 metros, oito primeiros lugares em Mundiais nas mesmas distâncias. Todos eles estavam a comentar em conjunto em Londres quando Usain Bolt ganhou os 100, os 200 e os 4×100 metros nos Jogos de 2012. E não disfarçaram o delírio.

O americano Michael Johnson admitiu nessa altura que a maioria dos comentadores eram aborrecidos e que as pessoas queriam outra coisa. Tornou-se uma referência entre as dezenas de ex-atletas presentes nas grandes provas, como também Jonathan Edwards, cinco vezes medalhado no triplo salto em Campeonatos do Mundo e recordista mundial da disciplina. E Usain Bolt tem uma outra vantagem: é divertido, lida como ninguém com a imprensa e sabe exatamente o que os fãs querem.

https://www.youtube.com/watch?v=csPrjgcdcRA

Bolt, o empresário na área da restauração

O Usain Bolt’s Tracks & Records nasceu em abril de 2011 em Kingstom. É um enorme restaurante temático que possibilita aos visitantes não só ouvir os ritmos jamaicanos, saborear a comida local e conhecer um pouco mais da sua cultura mas também aprofundar os conhecimentos sobre o atleta, que foi um peça chave para o nascimento do negócio. Depois, a coisa foi crescendo e crescendo com sucesso no país.

Esta semana, a companhia Franjam, que trata da parte operacional do espaço na Jamaica, e o Casual Dining Restaurants Group assinaram um contrato para a inauguração de 15 Usain Bolt’s Track & Records no Reino Unido nos próximos cinco anos. “Estou muito feliz por poder partilhar um pouco da Jamaica que conheci e amo pelo mundo. Londres sempre foi um local especial para mim”, comentou o atleta.

Bolt, o filantropo

A Fundação Usain Bolt sempre foi uma das prioridades do atleta, que apoia também a William Knibb Memorial. Mas apoia mesmo: para se ter um exemplo, já depois de ter feito um grande investimento em pistas, autocarros e computadores para bibliotecas de escolas, ofereceu quase um mihão de euros em equipamentos para futebol e críquete. Além disso, tem várias iniciativas com a Federação Internacional de Atletismo no plano social e costuma participar em leilões para recolha de fundos para os mais carenciados. Ficou também célebre a adoção da pequena Chita Lightning Bolt, em Nairobi, avançando na altura dez mil libras e uma verba fixa para cobrir todos os custos do pequeno animal no orfanato.

Quando ganhou as últimas três medalhas olímpicas no Rio de Janeiro, o jamaicano já tinha deixado essa promessa de “tentar ser um recordista também fora das pistas”, com o objetivo de aumentar o atual número de 200 crianças que estudam e treinam na Fundação em Sherwood Content e levar o projeto para outros países.

Bolt, o modelo da Puma

Usain Bolt tem um acordo multimilionário com a Puma, numa ligação que ficará para sempre como uma das mais fortes no desporto mundial. E como era expetável, o nome do atleta está numa coleção à parte, que tem tendência para se imortalizar agora que terminou a sua carreira. Mas as ligações neste ponto não ficam por aqui.

O jamaicano trabalha também com a Soul Eletronics, dando a cara por uns headphones sem fios propícios para a preparação dos atletas antes das provas. E ainda há a questão dos ténis: todas as seleções, clubes ou atletas com ligação à marca calçarão sapatilhas da Puma ou de Bolt? O leque de opções para alargar e diversificar o âmbito deste acordo são muitos e os especialistas acreditam que o recordista mundial dos 100 e dos 200 metros é uma marca que não se vai desvalorizar após acabar a carreira.

Bolt, o treinador de velocistas

Glen Mills é um nome poucas vezes falado no atletismo. Quem é Glen Mills? É apenas e só o homem que está por trás de todos os grandes velocistas como Usain Bolt, Kim Collins, Ray Stewart ou Yohan Blake. E o treinador que já viu os seus atletas ganharem dezenas e dezenas de medalhas em Jogos Olímpicos e Campeonatos do Mundo. Depois de ter sido treinador do atletismo olímpico da Jamaica entre 1987 e 2009, dedicou-se apenas à velocidade no Racers Track Club.

Há qualquer coisa de especial neste técnico que é completamente obcecado com detalhes. Por exemplo, quando recorda os primeiros tempos de Bolt, não tem problemas em admitir que era muito desengonçado. Mas mesmo depois de ter quebrado os recordes mundiais dos 100 e dos 200 metros em Berlim, continuou a ver vídeos e a tentar corrigir pormenores sobretudo na saída do gigante jamaicano. Além de vários cursos sobre diversas temáticas ligadas à área do treino que foi tirando e passando a Bolt. Glen Mills tem 67 anos. Será que o atleta pondera passar de discípulo a mestre?

Bolt, o jogador de críquete

Desde miúdo que Usain Bolt vê jogos internacionais de críquete com o pai, Wellesley. Que, também ele, tem uma história curiosa: quando um jornal inglês foi conhecer melhor Sherwood Content, a pequena cidade onde o velocista cresceu, apanhou-o com uma camisola de 2010/11do… Sporting (provavelmente porque a Puma era nessa altura patrocinadora dos leões). Chegam a ficar ali horas e horas agarrados à televisão a seguir um desporto com grande tradição no país e que sempre fascinou a lenda do atletismo.

O pai acabou por “empurrá-lo” para a modalidade onde brilhou nos últimos dez anos, mas ficou aquele “bichinho” (tinha como ídolos Sachin Tendulkar, Waqar Younis ou Chris Gayle), também influenciado pelo companheiro Yohan Blake, esse sim um jogador que se safa mesmo bem no desporto. Bolt já marcou presença em alguns jogos e mostrou os seus dotes, o que levou mesmo a Shane Warne’s Melbourne Stars a convidar o atleta para uma experiência no críquete. E mais recentemente, Virat Kohli, uma das estrelas da equipa indiana, também tentou convencer o jamaicano.

Bolt, o fenómeno em App

Existe uma outra fonte de rendimento de Bolt, menos conhecida mas igualmente profícua: o mundo das apps. De acordo com o Telegraph, a app oficial do jamaicano liderava no seu país e ocupava um surpreendente segundo lugar na lista das apps gratuitas mais descarregadas no Reino Unido (também por coincidir com o ano dos Jogos Olímpicos de Londres, talvez o maior momento da carreira do velocista).

Esta poderá ser outra das opções de Usain Bolt: desenvolver mais apps no seu nome e entrar mais a sério no domínio do digital para explorar o seu nome. E os 41 emojis criados (e entretanto rebatizados de Boltmojis) podem ser um sinal desse caminho para o mundo que nos espera no futuro.

Bolt, o DJ que também sabe dançar

A vida correu bem a Usain Bolt nos últimos dez anos, onde teve quase sempre razões para andar feliz da vida. E o que ele gosta mesmo é de festa, como se viu no final dos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012: tomou conta do espaço que a Puma fez na cidade e onde centenas e centenas de jamaicanos se juntavam, colocou a música para toda a gente dançar e também foi ele próprio mostrar como os seus pés são ágeis.

Foram várias as ocasiões em que Usain Bolt se colocou à frente da mesa de mistura para passar música (naquela que parece ser cada vez mais uma tendência, como se viu em casos improváveis como Mendieta, Drenthe, Shaquille O’Neal ou Dennis Rodman). E todos dizem que o jamaicano tem jeito para a coisa, como aconteceu em outubro do ano passado quando se juntou ao DJ Horizon em Melbourne.

Bolt, o atleta

Houve aquela frase de Usain Bolt que nos ficou na cabeça após a final dos 100 metros destes Campeonatos do Mundo, onde terminou atrás dos americanos Justin Gatlin e Christian Coleman: “Pela primeira vez na minha carreira, acabei uma prova e estou com dores nas pernas. É o mesmo a última prova”. E esta última imagem de Usain Bolt caído no chão, sozinho, depois de sentir um problema muscular nos 4×100 metros que o afastou da conquista da 15.ª medalha em Campeonatos do Mundo.

No entanto, e sobretudo nos 200 metros, a verdade é que não existe um sucessor definido que possamos dizer “é este”. E isso ficou bem visível com o triunfo surpresa do turco Ramil Guliyev na final, batendo favoritos como Wayne Van Niekerk (África do Sul), Jereem Richards (Trinidad e Tobago) ou Isaac Makwala (Botswana). Mais: sem tirar mérito aos vencedores, a verdade é que os tempos nas corridas decisivas deixaram muito a desejar, provando que a grande diferença foi mesmo a descida de Bolt. Daqui a dois anos, o jamaicano terá 33 anos. E nos próximos Jogos, quase 34. Gatlin ganhou o ouro nos Mundiais com 35. Será que o mais campeão entre todos os campeões consegue ser forte o suficiente para resistir às saudades que terá das pistas?