A relação dos atletas americanos com a imprensa pode ser muito boa, boa, normal, má ou muito má. Conseguimos encontrar exemplos de tudo isso. E depois há Allyson Felix, a atleta que os sucessivos triunfos colocaram como uma espécie de pop star desde que conseguiu a medalha de prata nos 200 metros dos Jogos de 2004, com apenas 18 anos. É certo que é uma figura fácil de gostar, aquilo a que podemos chamar de menina “certinha” que sabe dar o exemplo, mas depois foi ganhando outras expressões nessa preponderância mediática com produções de moda e trabalhos de fundo nos principais meios de comunicação.

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This. Is. Everything.????

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Antes dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, Allyson Felix fez uma dessas reportagens mais alargadas com a US Weekly e contou pormenores da vida que nunca tinham sido abordados pela própria: o sonho de ser ginasta, a queda pelo ator Will Smith, a obsessão pela coleção de ténis, o pavor de abelhas (foi uma vez picada 70 vezes por um enxame em África), a aversão a ovos, o gosto pela cozinha, a tendência para dormir em todas as viagens de avião, a tradição de passar os domingos na igreja com a família (o pai é pastor), a relação estreita com o irmão Wes. Saiu do Brasil com mais três medalhas: duas de ouro nas estafetas (4×100 e 4×400 metros), uma de prata nos 400 metros, apenas batida por Shaunae Miller-Uibo.

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À partida para estes Mundiais de Londres, a expetativa era outra: poder superar o recorde de medalhas conquistadas em Campeonatos do Mundo pela jamaicana Merlene Ottey (14). E, no limite, ultrapassar também o registo que entretanto Usain Bolt deveria alcançar (15, que afinal de contas parou mesmo nos 14 com a lesão nos 4×100 metros). Por isso, as entrevistas foram focando mais o aspeto desportivo do que outra coisa. E a americana conseguiu esse objetivo em Londres mas sem atirar foguetes. “Nunca me motivei por esses recordes e só soube mesmo porque vocês escreveram sobre isso”, disse.

“Nunca assumo nada como garantido. É uma carreira especial mas nunca olho para trás. Esta noite queríamos passar um bom bocado mas não são esses recordes que me guiam”, comentou após o triunfo na estafeta dos 4×100 metros, já depois do bronze nos 400 metros a meio da semana. Essa foi uma das corridas mais caricatas dos Mundiais porque, a 100 metros do fim, Shaunae Miller-Uibo e Allyson Felix estavam destacadas na liderança e a preparar a discussão pelo ouro. De repente, as campeãs olímpicas começaram a sentir as pernas cada vez mais pesadas e pesadas. Tão pesadas que a compatriota Phyllis Francis e Salwa Eid Naser, do Bahrain, passaram à frente.

“Ao longo destes campeonatos, já vimos mais do que uma vez que às vezes as coisas não correm como as pessoas desejam. Como atleta, respeito sempre toda a gente em pista mas é mesmo assim. Depois dos Jogos, tentei vir para estes Mundiais com uma nova perspetiva nos 400 metros mas não resultou como queria. Fiquei desapontada com o resultado, mas tenho de levantar-me e seguir em frente”, frisou

É esse o grande lema da americana de 31 anos: quando um atleta cai, tem de levantar-se porque isso vai fazer com que fique mais forte. E foi isso também que fez no ponto mais baixo da carreira, quando saiu ao colo do irmão nos Mundiais de 2013, em Moscovo, após lesionar-se durante a final dos 200 metros.

À exceção desse ano, ganhou sempre pelo menos uma medalha entre Jogos Olímpicos e Campeonatos do Mundo entre 2004 e 2017. E passa agora a ser a Rainha dos Mundiais, somando 16 medalhas com o ouro conquistado esta noite na estafeta dos 4×400 metros (e com grande, grande avanço).

Nascida e criada em Los Angeles, ‘Shug’, como também é conhecida’, sempre adorou a ginástica e o basquetebol mas seguiu as pisadas do irmão Wes (chegou a ganhar medalhas em Mundiais de Juniores e é hoje agente da campeã olímpica) e dedicou-se ao atletismo. Tinha a alcunha de “Perninhas de Frango” (apesar de devorar donuts desde pequena) e não demorou a ganhar campeonatos nacionais nos escalões mais jovens, correndo “por uma questão de fé”: “Considero que fui abençoada por Deus e tenho de usar esse dom ao máximo”.

Mas havia ali qualquer coisa especial na miúda que colecionava autógrafos (o mais especial que tem é o de Ike Turner, músico falecido em 2007). Mesmo sendo magrinha, tinha uma invulgar força no trabalho de ginásio e uma refinada técnica que lhe permitia dominar por completo as corridas de 200 metros, conseguindo mesmo fazer 22,11 nos Nacionais de Pista Coberta, marca que não foi homologada como recorde mundial júnior por não haver os requisitos necessários para a sua validação no recinto. Foi nesse ano de 2003 que tomou a radical decisão de se tornar elegível para um contrato profissional (por norma os atletas passam sempre pelo desporto universitário), assinando pela Adidas (mudaria depois para a Nike num contrato milionário) mesmo passando a frequentar a Universidade da Carolina do Sul, onde tirou a licenciatura de professora primária.

Após a surpreendente prata nos 200 metros dos Jogos de 2004, Allyson, que tem por hábito ouvir Beyoncé antes do início das provas, tornou-se a mais nova de sempre a sagrar-se campeã mundial da distância no ano seguinte, em Helsínquia. Foram 13 anos sempre ao mais alto nível com um currículo que fala por si. Exemplo: ganhou nove medalhas olímpicas entre 2004 e 2016, seis de ouro e três de prata, entre 200, 400, 4×100 e 4×400 metros. Nos Mundiais, e a partir de agora, é a maior de sempre, com 16.

Em 2005, já depois da presença sem finais nos Mundiais de Paris de 2003, Allyson Felix, então com 19 anos, ganhou o ouro nos 200 metros; em 2007, em Osaka, sacou três ouros nos 200, 4×100 e 4×400 metros; dois anos depois, em Berlim, ganhou o ouro nos 200 e nos 4×100 metros; em 2011, conquistou pela primeira vez quatro medalhas, com ouro nas estafetas, prata nos 400 metros e bronze nos 200 metros. Houve depois aquela dramática lesão nos Mundiais de Moscovo, em 2013, antes de regressar aos pódios: um ouro (400 metros) e duas pratas (4×100 e 4×400 metros) em Pequim, há dois anos; dois ouros (4×100 e 4×400 metros) e um bronze (400 metros) agora em Londres. 14 anos, oito Mundiais, 16 medalhas e um lugar no topo das melhores entre as melhores em Campeonatos do Mundo.

O recorde de Inês entre desilusões, surpresas e confirmações

Chegaram ao fim os Campeonatos do Mundo de Londres. Que ficarão sempre como o palco onde Usain Bolt e Mo Farah fizeram as despedidas das pistas. E onde, 12 anos depois, Portugal voltou a conseguir somar duas medalhas: o ouro de Inês Henriques nos 50 km marcha e o bronze de Nelson Évora no triplo salto (que somou a quarta medalha na competição desde 2007). A Seleção passou a somar um total de 19 medalhas em Mundiais através de dez atletas. Patrícia Mamona e Susana Costa ainda se apuraram para a final mas falharam o top-8 do triplo salto.

O feito de Inês teve uma nota especial: foi o único recorde mundial batido em Londres, tal como já tinha acontecido em 2015 com o americano Ashton Eaton, no decatalo (em 2013 não houve nenhum). Longe vão aqueles anos mágicos como o de 2009, em Berlim, quando o jamaicano Usain Bolt estabeleceu as melhores marcas de sempre nos 100 e 200 metros e a polaca Anita Wlodarczyk (que voltou a fazer história em 2017 com as luvas de Kamila Skolimowska) melhorou o registo máximo no lançamento do martelo.

Com a Rússia de novo ausente mas com 19 atletas a competir como neutros (que ganharam mais medalhas do que em 2015…), estes Mundiais ficaram marcados pelo domínio dos americanos (em especial Justin Gatlin e Tori Bowie nos 100 metros, apenas ensombrado pela derrota da equipa de 4×400 metros seis Mundiais depois para Trinidad e Tobago) e pela queda dos velocistas jamaicanos (até na estafeta de 4×400 metros feminina do último dia sofreram uma lesão…). Depois da medalha de bronze, Usain Bolt lesionou-se na última prova e passou da pior forma à reforma, ao passo que Elaine Thompson nem foi ao pódio na final dos 100 metros. Ramil Gulyiev aproveitou a ausência de Andre De Grasse por lesão para ganhar os 200 metros, mas há outros nomes para o futuro como Wayne van Niekerk ou Chris Coleman. Mo Farah, que também se despediu das pistas, terminou com a prata nos 5.000 metros, depois de ter conseguido logo no primeiro dia o ouro nos 10.000 metros.

Entre muitos outros bons resultados registados ao longo da competição (mesmo sem marcas por aí além), nota ainda para o domínio de Dafne Schippers nos 200 metros, para a confirmação de Thiam no heptatlo, para o ressurgimento de Luvo Manyonga no salto em comprimento, para a surpresa de Karsten Warholm nos 400 metros barreiras, para a superioridade de Yulimar Rojas no triplo salto e para a afirmação de Pierre-Ambroise Bosse nos 800 metros. Para finalizar, algo que dará muito que falar nos próximos dias: a Espanha não conseguiu uma única medalha nestes Mundiais. O que se passa com o atletismo espanhol?

Como não poderia deixar de ser, a organização guardou para o final da competição uma sentida homenagem a Usain Bolt. Sebastien Coe, antigo campeão olímpico e atual presidente da Associação Internacional de Atletismo, e Sadi Khan, mayor de Londres, ofereceram ao jamaicano um pedaço da pista onde brilhou na final dos 100 metros dos Jogos de Londres, houve volta olímpica, mas percebeu-se que o velocista ainda não esqueceu o que se passou na véspera. A simpatia estava lá, como sempre, mas não foi a mesma coisa…