Título: “Diário de um Zé Ninguém”
Autor: G. & W. Grossmith
Editora: Tinta da China

Publicado originalmente na revista “Punch”, em 1888 e 1889, Diário de um Zé Ninguém, dos irmãos George Grossmith e Weedon Grossmith, foi editado pela primeira vez em Livro no ano de 1892. George – humorista, músico e compositor destacado no seu tempo — escreveu mais e Weedon dedicou-se às ilustrações, reproduzidas também nesta edição da Tinta da China, integrada numa coleção dirigida por Ricardo Araújo Pereira (este é o sétimo volume). The Diary of a Nobody levou algum tempo a atingir o estatuto de clássico no cânone britânico, vindo, muitos e muitos anos após o seu lançamento, a influenciar os múltiplos diários cómicos da imprensa britânica (como os da Private Eye).

Este retrato possível de uma certa classe média londrina do fim do século XIX arranca com a confissão da personagem Charles Pooter, empregado de escritório, voz e a figura central de um livro de não-aventuras, todas elas esboçadas no início de cada capítulo: “Depois do meu trabalho na City, gosto de estar por casa”. Aí encontra sempre qualquer coisa para fazer: “Um punaise aqui, uma persiana para endireitar ali, uma ventoinha para pregar ao tecto ou parte de uma alcatifa para pregar ao chão”. Actividades que Pooter assume poder executar de cachimbo na boca. Além destas excitantes aventuras domésticas, arrisca, aqui e ali, um humor seco, trocadilheiro, raramente bem sucedido: “Tenho de mandar tirar de lá a raspadeira, se não sou eu quem tem de se raspar. Não costumo dizer muitas piadas”. A declaração será desmentida ao longo das diarísticas entradas, com diversas tentativas de piada, quase sempre feitas com base em – muitos deles confrangedores — jogos de palavras.

No seu dia-a-dia doméstico, em Holloway (Londres, pois), o empregado de escritório, com mais de 20 anos de serviço fiel à mesma firma, sob as ordens do Sr. Sollicit, mantém algumas cumplicidades. A primeira das quais é com a sua mulher, Carrie, companheira e testemunha das suas inabilidades – e a única pessoa que se ri com vontade das suas graças. Logo a seguir, vem aquela que tem com os seus amigos Cummings e Gowing, que entram na casa, em Brickfield Terrace, pela porta pequena do lado, ou para se queixar do cheiro a tinta ou então jogar dominó. Ainda há o filho, Lupin, que surge a partir do capítulo VI, para anunciar, de uma forma insolente, que fora despedido do seu emprego bancário e chocar o pai com os seus declarados hábitos de dandy. Há quem defenda que a adesão de Evelyn Waugh a este livro (é dele a sentença “é o livro mais engraçado do mundo”) também se relaciona com o sentimento de identificação que terá tido com essa figura, capaz das frases mais mordazes, nos instantes mais inoportunos, sobre os mais delicados assuntos. E de se superar nos momentos de desvantagem no marcador. O grande sonho do pai é ver o filho assentar no mesmo escritório onde passa os dias. “Podemos apanhar juntos a carreira, voltar juntos para casa, e quem sabe se com o tempo não começa a interessar-se pela nossa casinha, se não começa, talvez, a ajudar-me a pregar um prego aqui ou acolá, ou a ajudar a sua querida mãe a pendurar um quadro”. Desejos inconcretizáveis dada a crónica irrequietude do descendente.

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Aos poucos, à conta da melodia das suas confissões de 15 meses e das armadilhas em que cai, vai crescendo no leitor uma empatia com Pooter e este registo de pequenas peripécias, muitas com (ligeiras) consequências físicas. Torna-se familiar. As suas pequenas ofensas tornam-se nas nossas pequenas ofensas por acontecimentos decisivos como a circunstância de o moço de recados do merceeiro ter partido a corda da campainha ou o facto de a lavandaria lhe ter enviado para casa uma meia desirmanada. O sentimento de ofensa predomina nos comentários. Pooter ofende-se com as bocas que lhe mandam amigos e familiares, conhecidos e desconhecidos – e com tudo o que lhe acontece, do uso do seu diário por alguém para acender a lareira ao envio de um postal de Natal insultuoso, da forma como a empregada sacode a toalha, deixando cair migalhas para a alcatifa, à obrigação de pagar uma vasta refeição numa festa em que se julgava convidado. O bullying causa-lhe insónias.

A vida social ao casal Pooter vai-se alargando – ou tentando alargar-se, como na falhada ida ao Baile da Casa do Município que acaba num trambolhão familiar em momento dançarino. Surgem novas personagens, como a amada de Lupin, Daisy Mutlar, o actor de teatro amador Burwin-Fosselton, Couruge, distinto penetra que quando abre a boca a única palavra que diz é “precisamente”, e uma figura que se define no nome que transporta, Pedant Posh – opção meritória da tradutora (no original é Murray Posh), Margarida Vale de Gato, que resolveu, como conta numa nota final, alterar os nomes das personagens secundárias sempre que encontrou alternativa em que o nome continuasse a parecer inglês mas ganhasse em português conotação humorística.

Aplauda-se este gesto de lançar um livro com um humor sem exuberância e com múltiplas situações de constrangimento em território habituado ao gozo directo, da sátira, sobre os outros – “os poderosos”. O seu tom, apelando mais ao sorriso lento do que à gargalhada rápida, pode levar o seu tempo a sintonizar e por isso é capaz de merecer uma releitura. Que, ao seu ritmo, consiga encontrar os seus leitores.

Nuno Costa Santos, 42 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.