Martin Scorsese, que dirigiu Jerry Lewis num dos melhores filmes de ambos, “O Rei da Comédia” (1982), é que sabia, quando proclamou que ele é que era “o verdadeiro rei da comédia”. Isto porque Jerry tinha estado em absolutamente todos os sítios onde se fizesse entretenimento e atuado em todos os meios possíveis: no circuito da comédia “stand up” do interior dos EUA, em Las Vegas, no Copacabana e na Broadway, no teatro musicado e nos clubes noturnos, na rádio, na televisão e no cinema, e até nas maratonas televisivas que levava a cabo anualmente para angariar dinheiro para o combate à distrofia muscular. Jerry Lewis reinou em todos os cantos do mundo do espectáculo, e fez sempre rir onde quer que se manifestasse. (Esteve em Portugal pelo menos duas vezes, a filmar, apenas como actor, “Jerry em Londres”, de 1968, e “Jerry, Pescador de Águas Turvas”, de 1969, ambos muito maus. Neste último, fala-se espanhol em Lisboa, o que levou a que a fita fosse vaiada quando passou cá).

Com a sua morte, aos 91 anos, desaparece o último gigante da comédia dos EUA e o derradeiro homem dos sete ofícios do cinema americano – ator, realizador, argumentista, produtor e cantor –, o “nerd” que começou por ser o parceiro alucinado, esganiçado e desconjuntado do suave, composto e romântico Dean Martin nos anos 40 e 50. Para se tornar depois num realizador de farta inventividade formal, imaginação visual e meticulosidade técnica, dirigindo-se a si mesmo em filmes que são rigorosíssimas coreografias de histrionismo e sinfonias de partes gagas, onde demonstra a mais total e exasperante inadequação com o mundo à sua volta. Começando com a dificuldade em estar no mesmo comprimento de onda do seu semelhante (as mulheres em primeiro lugar) e acabando na incompatibilidade com os objetos mais comuns – e nem falemos em tudo o que seja mecânico.

A comédia de Jerry Lewis é a do indivíduo todo ele bem-intencionado e de uma candura comovente, mas irremediavelmente trapalhão e desajeitado, que, quando confrontado com as dificuldades, os absurdos e a dureza da realidade, e com a maldade dos homens e o poder de atração das mulheres, pura e simplesmente perde a cabeça e instala o caos e a destruição onde quer que esteja. Eis uma seleção de 7 filmes onde podemos encontrar o melhor, mais criativo, mais arrojado, mais esfusiante e mais desarvorado Jerry Lewis, o verdadeiro rei da comédia. O rei morreu, viva o rei!

“Um Espada para Hollywood”

de Frank Tashlin (1956)

O último dos muitos filmes que Jerry Lewis fez com Dean Martin nas décadas de 40 e 50, e um dos melhores, porque assinado por Frank Tashlin. Este realizador vindo dos “comics” e do cinema de animação teve uma empatia imediata com Jerry e continuaria a trabalhar com ele depois deste começar a realizar os seus próprios filmes. Aqui, Jerry faz um fã de cinema que ganha um carro num concurso, e Dean um cantor cheio de dívidas que o convence que vive em Hollywood, para onde partem ambos, com o enorme cão daquele. Tashlin carrega na tecla do “slapstick”, com muitos efeitos cómicos saídos directamente dos desenhos animados.

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“Jerry no Grande Hotel”

de Jerry Lewis (1960)

O seu primeiro filme como realizador, feito no hotel de Miami onde atuava à noite e rodava de dia. Jerry interpreta um paquete e praticamente não fala (aparece também a fazer de si próprio, satirizando o seu estatuto de “estrela”), envolvendo-se numa série de situações desopilantes em que usa apenas o corpo e as expressões faciais. Nesta fita que é um festival de pantomina dedicado a Stan Laurel, um dos seus ídolos (a personagem de Jerry chama-se Stanley por isso mesmo), Jerry Lewis introduziu o uso do vídeo no “set”, através da colocação de monitores em vários sítios-chave, que lhe permitiam seguir a sua interpretação em tempo real ou vê-la logo depois de cada cena, e corrigi-la, bem como acertar detalhes técnicos.

“O Homem das Mulheres”

de Jerry Lewis (1961)

Escrito com Bill Richmond, seu amigo e habitual colaborador nos argumentos, “O Homem das Mulheres” tem Jerry no papel de um sujeito que sofre um desgosto amoroso e jura nunca mais querer nada com mulheres. Para arranjar logo a seguir um emprego numa residência que só aceita hóspedes do sexo feminino. Jerry fez construir para este filme um dispendioso cenário de quatro andares (que ficou conhecido como a “casa de bonecas”) para representar a residência, e poder assim filmar em estúdio e controlar totalmente o espaço da ação. A fita, que deve muito a Frank Tashlin, cómica e visualmente, é um maná de “gags” de toda a sorte, dos de “slapstick” mais clássicos aos surreais e abertamente absurdos.

“As Noites Loucas do Dr. Jerryl”

de Jerry Lewis (1963)

A obra-prima de Jerry ator/realizador, uma variante cómico-dramática de “O Médico e o Monstro”. Jerry interpreta duas personagens. Julius Kelp, um feioso, desastrado e socialmente incapaz professor universitário, que inventa um soro que o transforma naquilo que ele não é. E Buddy Love, um tipo charmoso, “cool” e engatatão inveterado, e sem pinga de carácter. Jerry Lewis desmentiu que Buddy fosse uma forma de ajustar contas com o seu antigo parceiro Dean Martin, e antes um compósito de várias pessoas odiosas, modernaças e convencidas que tinha conhecido. Há ainda quem interprete Kelp e Love como a forma que Lewis arranjou para expor, caricaturalmente, os dois lados da sua própria personalidade.

“Jerry 8 ¾”

de Jerry Lewis (1964)

Jerry queria que este filme fosse uma continuação de “Jerry no Grande Hotel”, para continuar a minerar as possibilidades cómicas da personagem do mandarete, agora no contexto do mundo do espectáculo. Acabou por pôr a ideia de parte, mas ficaram várias marcas dela no filme, sendo a mais óbvia a personagem de Jerry, o mandarete de um hotel de luxo chamado Stanley, que é a cara chapada um famoso cómico que morreu num desastre de aviação. Temendo ir para o desemprego em peso, a equipa do morto recruta Stanley para se fazer passar por ele, mas o mandarete revela-se — claro! — uma catástrofe ambulante. O filme é um elogio da comédia visual dobrado de sátira cáustica ao “show business”, com Hollywood e a televisão à cabeça.

“Vai Trabalhar, Malandro!”

de Jerry Lewis (1980)

Depois de quase 10 anos sem assinar um filme (desde o famosamente inédito “The Day the Clown Cried”, em 1972, rejeitado pelo seu autor por ter ficado profundamente insatisfeito com o resultado, e do qual só há uma cópia na Biblioteca do Congresso), Jerry rodou esta comédia em que interpreta Bo Hooper, um palhaço que fica desempregado com o fecho do circo onde atuava, e vai viver com a irmã e o cunhado, enquanto procura trabalho. O realizador e ator volta a explorar de forma brilhante o tema da incompatibilidade da sua “persona” cinematográfica com os objetos do quotidiano, que aqui chegam a reagir com hostilidade contra a sua presença, como se pode ver na sequência com o carro na garagem.

“O Rei da Comédia”

de Martin Scorsese (1982)

O melhor papel de todos os que Jerry Lewis interpretou em filmes em que foi dirigido por outros realizadores. Ele personifica Jerry Langford, o jovial e divertido apresentador de um programa de televisão que é uma pessoa brusca, ácida e solitária em privado, e que se vê raptado por Rupert Pupkin (Robert De Niro), um cómico sem piada nenhuma que o venera e quer ser famoso a todo o custo. O tema da dupla identidade de “As Noite Loucas do Dr. Jerryl” volta a surgir em “O Rei da Comédia”, só que num contexto mais realista e mais sinistro. Martin Scorsese não dá um passo em falso nesta sátira negra à cultura da celebridade e á obsessão patológica com os “famosos”, e Lewis é plenamente convincente a fazer de uma projeção de si mesmo, e do seu oposto. Ao ponto de apetecer perguntar: quanto de Jerry Langford haveria realmente nele?