Quem passa pelo Largo Artur Arcos, em Miragaia, talvez não lhe decore o nome. Na disputa pelas atenções dos visitantes, o rio Douro, do outro lado da rua, destaca-se. O edifício da Alfândega do Porto também enche os olhos. Em 2015, o artista Daniel Eime ajudou o Largo a ficar mais bonito e a lutar pelas atenções, ao pintar o rosto de uma senhora de idade na fachada de um edifício. Uma homenagem aos habitantes mais velhos daquela zona, que passavam horas à janela. Por baixo das senhoras e das janelas dos edifícios, ora coloridos, ora brancos, ora decorados com azulejos, há roupas estendidas, daquelas que dão boas fotografias na hora de retratar a zona histórica. O letreiro laranja do restaurante Verso em Pedra, a anunciar as suas famosas francesinhas com as respetivas fotografias do pitéu, captam as últimas atenções. Pouco tempo sobra para reparar que, mesmo por cima do restaurante, fica uma coletividade quase centenária da cidade, chamada Grupo Musical de Miragaia. O presidente do clube quer mudar isso. E arranjou uma maneira de atrair turistas e locais.

Fundado em 1926, o Grupo teve um rancho folclórico, uma equipa de futsal vencedora de várias taças, organizava concertos, passeios, ciclos de cinema, ensino para os mais novos e bailes para os mais velhos. As dificuldades ditaram a suspensão de muitas destas iniciativas, mas o presidente, António Soares, recusa-se a deixar a coletividade morrer. “Não tem sido fácil”, confessa ao Observador. “Mas nós estamos cá para lutar.” No topo do edifício de quatro andares havia um terraço espaçoso, com vista desafogada sobre os casarios, o rio Douro e Vila Nova de Gaia. Era usado para a festa de aniversário de um ou outro associado, ou até para ver as corridas de aviões do Red Bull Air Race, cuja próxima edição acontece no fim de semana de 2 e 3 de setembro. “Isto estava nos mínimos.”

Dos mínimos fez-se uma oportunidade. Pintaram o espaço, colocaram umas mesas, umas cadeiras e uns vasos, pediram ajuda a um entendido para fazerem uma carta de vinhos e juntaram ao menu uns petiscos e umas sandes que combinam com esses vinhos. No final de julho, abriu oficialmente o Mirajazz.

Há perto de 30 referências de vinhos, que podem ser bebidos com vista para as caves de Vinho do Porto. © João Porfírio / Observador

A entrada faz-se mais acima, pela Rua Tomás Gonzaga, de quem vem do jardim das Virtudes. A certa altura há umas escadas à esquerda que descem, acompanhadas pela muralha Fernandina, em direção ao rio. Quando se começa a ouvir jazz, sabemos que chegámos ao destino. Uma vez dentro do edifício, é hora de voltar a subir os degraus que nos levarão ao terraço. Uma dúzia de mesas alinham-se sobre os casarios, à espera que o sol se ponha. Se o tempo não estiver de feição, há algumas mesas no interior do espaço e bancos para quem se quiser sentar ao balcão.

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Rui Marques, Renato Rodrigues e Alessandro Zan são os associados mais presentes por ali. Os três têm os seus empregos mas, sempre que podem, dão uma ajuda no Mirajazz. “Não há um gerente, não há um patrão, fazemos isto pelo Grupo”, explica ao Observador Rui Marques, que durante o dia é comercial. Ninguém ali recebe um ordenado. Nem a direção. Rui chegou ao Grupo Musical de Miragaia porque um dia foi ver um concerto de jazz no auditório. A certa altura, um professor de música seu conhecido mencionou o terraço lá de cima, com “uma vista fantástica”. “Quando lá fui pensei que aquilo não podia estar fechado.”

A ideia foi amadurecendo. O jazz, por onde tudo começou, domina a banda sonora, que por vezes também vai ao blues, dependendo de quem estiver responsável pelo espaço naquele momento. Aos sábados ao final da tarde há concertos no terraço. A ideia é ter mais concertos em outros dias. As bandas de jazz que queiram ali tocar são bem-vindas. O espaço também está disponível para festas privadas e a ideia não é ficar só enquanto há sol e calor. Ainda estão a estudar que medidas poderão adotar para que o Mirajazz seja confortável no inverno.

Tábua de queijo e presunto da ilha. © João Porfírio / Observador

Para comer há, por enquanto, uma tábua de queijo e presunto da ilha, acompanhada por fatias de pão (11€), um mix vegan de molho de pimentos e cebola com fatias de pão e tostas com tomate (4€) e mexilhões ao molho de pimentos (5€). De resto, a aposta é nas tostas. Como a de tomate e queijo chèvre (4€), a de salmão fumado com courgette, molho de aneto e lima (4€) e a tosta de foie gras com doce de figo, nozes e uvas frescas (4,50€).

Disponíveis estão os vinhos de várias regiões do país, com perto de 30 referências. Todos são servidos em garrafa ou em copo, à exceção do Porto ruby Grahams Quinta dos Malvedos Vintage e do champanhe Billecart Brut reserva, só vendido à garrafa. O vinho a copo começa nos 3€ e as garrafas começam nos 10€. Um gin tónico, um Porto tónico feito com extra dry Grahams, cerveja, tremoços e amendoins, não falta nada.

“Queremos juntar o útil ao agradável. Por um lado, tirar rentabilidade para ajudar à sobrevivência do clube. Por outro lado, queremos dar-nos a conhecer”, explica o presidente, de 63 anos. Rui Marques confirma que querem fazer uma campanha de angariação de sócios, dando a conhecer o que é o Grupo e mostrando o auditório. “Há tantos grupos que se queixam que não têm espaço para fazer apresentações, etc., e nós temos aqui um auditório fantástico que ninguém conhece.” O presidente acrescenta que o objetivo de aumentar os sócios não se resume a que haja mais pessoas a pagar as quotas — 1€ por mês para os homens, 50 cêntimos para mulheres e menores. “Queremos que eles vivam aquilo, que comecem a ir hoje, amanhã, que participar nas atividades. Isso é que é o importante!”

© João Porfírio / Observador

“A essência da vida na zona histórica vai acabar. E qualquer dia deixamos de existir”

No piso zero fica o restaurante das francesinhas, que nada tem a ver com o Grupo Musical de Miragaia. No primeiro piso há quartos para alugar a turistas, propriedade de “uns arquitetos” que compraram ao proprietário da altura, porque o Grupo não tinha dinheiro para comprar. De resto, é tudo da coletividade. No primeiro piso fica o velho bar, com uma sala para sócios e outra de acesso exclusivo para não sócios. O café custa 50 cêntimos e a cerveja apenas 85 cêntimos.

Quem nos recebe nas instalações abaixo do Mirajazz é Fernando Soares, cunhado do presidente e sócio. Desde que está reformado que pode ajudar mais. É ele quem nos explica a técnica: na primeira sala, espaçosa, com mesas, sofás, mesa de matraquilhos e vista para o rio, há uma televisão que passa programas variados. Mas nunca futebol. Quem quer ver a bola tem de ir para a segunda sala, que é reservada a sócios, e onde também fica a mesa de bilhar. “É uma forma de atrair sócios”, admite, divertido. Por cima fica o Auditório e no topo o Terraço.

O Grupo Musical de Miragaia fica por cima do restaurante Verso em Pedra, com vista para o rio Douro. © Sara Otto Coelho / Observador

Quando se fez sócio, há mais de duas décadas, o homem de 64 anos recorda-se de haver mais movimento por ali. E bailes, com bola de espelhos e tudo. Até havia seleção de associados. Hoje há cerca de 400 associados, e qualquer pessoa é admitida. António Soares também ali chegou há 20 anos. Desde 2010 que é presidente. Conta que o Grupo Musical de Miragaia foi fundado por um grupo de amigos que se terá zangado com outro clube da zona, em 1926. Precisamente o ano em que começou a ditadura militar em Portugal.

“Antes do 25 de Abril o associativismo em Portugal era muito forte, porque as pessoas não tinham onde se reunir”, recorda António. Entre desporto, cultura, passeios ou simples jogos de sueca, os moradores e vizinhos entretinham-se juntos. Hoje, é difícil atrair os mais jovens para as coletividades de bairro. “A juventude não quer estar presa. Combinam encontrar-se aqui, estão meia hora a beber uma cerveja porque é barata e depois vão para a night”, conta Fernando. O presidente concorda. “Aquele espírito de antigamente perdeu-se. Eu se fosse jovem como eles hoje também era igual. Hoje há tanta coisa à frente deles!”

A outra dificuldade que têm de enfrentar, e que não ajuda à recuperação de clubes, ciclos de cinema nem bailes, é a saída dos moradores da zona. “Uma grande parte da malta mais velha já não mora aqui. Ao sábado encontramo-nos todos, fazemos um almoço no bar mas depois cada um vai para o seu lado”, lamenta. Chegam-lhe muitos relatos de pessoas que estão a ser despejadas da zona histórica pelos senhorios. “Nos anos 80 e 90 saiu muita malta por opção, porque não tinham condições de vida, famílias numerosas a viver em más condições. Os pais mantiveram-se, mas o que tem acontecido é que o senhorio quer tirá-los de lá. Ainda no outro dia me disseram: ‘Olha, já recebi ordem de marcha…’. A essência da vida na zona histórica vai acabar. E qualquer dia deixamos de existir.”

Fernando Soares é sócio há mais de 20 anos. Agora que se reformou, dá uma ajuda voluntária no bar. © Sara Otto Coelho / Observador

Em tempo de campanha para as eleições autárquicas, os políticos são presença assídua neste tipo de coletividades.”Já tivemos aqui o Manuel Pizarro, o Álvaro Almeida e a candidata à junta. Eles dizem-nos o que todos dizem: ‘pois, isto e aquilo, não está certo’, mas eu também não pedi nada. Só pedi que fizessem com que isto [saída dos moradores] parasse. O mais importante neste momento é conservar as pessoas no sítio delas. Agora até querem fazer escadas rolantes para os turistas aqui? Nós toda a vida andámos para cima e para baixo a pé.”

Uma sala de espetáculos aberta à cidade

Fernando Soares recusa acreditar que uma coletividade com quase 100 anos de vida possa acabar. “Alguém tem de pôr mão nisto!”, diz, confiante. Para além de manter vivo o espírito do clube, o objetivo mais urgente é manter vivo o chão do bar. A madeira está podre e já se veem buracos. O presidente diz que são precisos “entre 15 a 20 mil euros para obras”. Sem ajudas de ninguém, não há dinheiro. O movimento no terraço há de ajudar, mas vai demorar algum tempo até conseguirem somar tamanha quantia.

Foram-se os bailes e o desporto, mas ainda se dão ali aulas de música às crianças, aos sábados de manhã. Noutra sala, junto ao Mirajazz, há aulas de dança que as netas de António Soares frequentam. Uma tuna universitária tem ali guardados instrumentos, porque é ali que ensaiam à quartas-feiras. E a Confederação, um coletivo de investigação teatral fundado no Porto em 2010, aproveita o auditório para os seus ensaios e algumas atividades,

O auditório tem 90 lugares sentados e o presidente deixa claro que está aberto a outras companhias e grupos que precisem de um local para atuar. “É uma questão de virem conversar connosco”, diz. Mesmo a precisar de um chão novo no bar, tudo o que pede é um pagamento mínimo, para as despesas de luz e limpeza. “Não estamos aqui para ganhar dinheiro, isto para nós não é um negócio.”

Poucos sabem da existência deste auditório, com capacidade para 90 lugares sentados. © Sara Otto Coelho / Observador

Nome: Mirajazz
Morada: Escadas do Caminho Novo, 11, Porto (Miragaia)
Horário: Todos os dias das 16h às 21h
Contacto: hello@mirajazz.eu
Reservas: Aceitam
Site: www.facebook.com/pg/mirajazz