Pareciam deuses, mas eram apenas “Dois homens e uma mulher/ Arnaldo, Carlinhos e Zé”, e quem diria que passados 15 anos estariam por aqui, ainda a falar de amor com óculos escuros. Já sabem namorar, beijar de língua, onde ir e até onde ficar, no conforto das harmonias que fizeram sucesso mundial. A mensagem no fundo é a mesma, as pessoas querem ser felizes e amar intensamente e agora ainda arriscam fazer este consolo musical tocar no desconsolo da atualidade. São 10 canções gravadas às escondidas, uma delas com a fadista Carminho, e se estivéssemos desatentos podíamos dizer que algumas estavam no primeiro álbum, o que é um elogio, mas também é uma crítica.

A capa do novo disco dos Tribalistas

Em 2002 estes senhores venderam três milhões de discos, o Homem-Aranha era um único filme e os Nickelback, enfim, eram os Nickelback. A receita era bizarra, juntar três pessoas de carreiras totalmente diferentes e fazer música popular pelo caminho, tendo entre os membros Arnaldo Antunes, o mesmo que cantou “Proliferação das pestes/Porrada”. Podia ter sido um desastre mas deu tão certo como cheesecake: doce, popular e com apenas três ingredientes. A palavra chave é mesmo “doce”, assim como a icónica capa de Vik Muniz, com os Tribalistas desenhados em calda de chocolate, arriscando abusar no açúcar e versos de amor perfeito, mas sabendo quase sempre como fugir da gulodice. Tal como a carreira Vik Muniz, também foram acusados de facilitismo e falta de conceito; agora surpreendem um pouco, partem a redoma e conversam sobre os complicados dias do presente.

[ouça no Spotify o novo álbum dos Tribalistas:]

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Numa jogada arriscada, a música mais vendável, ou seja, o “Já Sei Namorar” de 2017, é “Diáspora”, logo a primeira. Ajustados com o novo Caravanas de Chico Buarque, a canção comenta a crise dos refugiados, começando com trechos do poema “O Guesa”, de Sousândrade, no registo falado de Arnaldo, popularizado em “Amor I Love You”. A mesma batida marota elétrica de “Já Sei Namorar” volta aqui mais lenta, criando um déjà vu desnecessário, com uma guitarra tuaregue para disfarçar.

“Atravessamos o mar Egeu/
O barco cheio de fariseus/
Como os cubanos, sírios, ciganos”

Cantam assim, quebrando pela primeira vez um dos mandamentos do não-movimento tribalista de 2002: “Os tribalistas já não entram em questão/ Não entram em doutrina, em fofoca ou discussão”. Depois tem “Um Só”, uma tentativa modesta de aproximar o Brasil repartido e politizado:

“Somos comunistas/
E capitalistas/
Somos anarquistas/
Somos o patrão/
Somos a justiça/
Somos o ladrão/
Somos da quadrilha/
Viva São João”.

“Um Só” parece um misto de “Tribalistas” e o sucesso “Velha Infância”, obrigando a ouvir e re-ouvir o primeiro álbum, com aquela irritação de “epá, conheço isto de algum lugar”.

[o vídeo do primeiro single, “Diáspora”:]

É certo que não se mexe numa equipa vencedora, e nesse sentido é injusto reclamar da estrutura quase similar destas canções, perfeitas delicadezas que fazem intercalar as três vozes numa melodia pegajosa agarrada pelo violão. Porém, ao falar de refugiados e de política desta forma descuidada, fica evidente que esta turma só é vencedora quando coloca os óculos escuros e fala de amor. Então vamos lá, fala-me de amor, como diz Olavo Bilac. A terceira é “Fora da Memória”, em linhas de violão gingadas lembrando “Beleza Pura” de Caetano, com sussurros de Carlinhos Brown, o homem pronto para todos os gemidos. “Fora da Memória” faz o mesmo serviço que “Lá de Longe” no primeiro álbum, uma canção de beleza irresistível, mais críptica e menos óbvia que o restante repertório, um registo de paixão reflexiva, infelizmente pouco explorado neste novo álbum. “Aliança” é Tribalistas de cábula, pop açucarado e delicado sobre um “par perfeito” para casar, com um ligeiro cavaquinho para deixar registado que isto afinal é música brasileira.

Em “Trabalivre” fazem um golpe baixo, celebrar a sexta-feira para o homem trabalhador, na mesma melodia de sempre, com a atenuante de ter um Carlinhos Brown muito inspirado, que neste Tribalistas bem podia ser o homem trabalhador da canção — nunca é a estrela e está sempre pronto para tocar qualquer coisa, seja ele o gongo ou berimbau. A textura das músicas pertence-lhe e está muito encolhido em comparação com a malandragem paulistana de Arnaldo e voz portentosa de Marisa.

[“Os Peixinhos”, com Carminho:]

Enquanto “Baião ao Mundo” introduz o tema da escassez de água na terra do Baião, “Ânima” mergulha num certo tom psicadélico, uma viagem “no fim dos anos 60” onde “só levo água”. Depois da estreia do mote “água”, ficamos um pouco como Gilberto Gil: “Traga-me um copo d’água, tenho sede”. A súbita preocupação com a hidratação faz nos pensar de novo onde estão esses óculos escuros e as canções de amor. Felizmente estão em “Feliz e Saudável”, uma divertida briga de casal que retorna ao jogo confortável da banda, com a marca registada de violão e bateria eletrónica. A discussão conclui em ser “feliz e saudável”, coisa importante a lembrar, já que o amor também é feio. Estamos quase no fim e não temos a certeza se ouvimos oito músicas, ou apenas uma, todas foram suaves ao ouvido, mas poucas colaram. A penúltima, “Lutar e Vencer”, faz referência às ocupações de estudantes no Brasil pela reforma educacional no ano passado, um tema complexo e detalhado, que nas mãos dos Tribalistas se resume a uma garantia que “Nós temos líderes”, e eles estão “Reformulando a sala/Dormindo no chão”.

A última paragem é “Os Peixinhos”, no fundo do mar, com um novo peixe no aquário, substituindo a participação da baiana Margareth Menezes em 2002. A nova Tribalista é Carminho, a fadista aproveita o tempo de fama para exorcizar o xilofone e puxar o sotaque lusitano numa ingénua canção sobre peixinhos que “Nadam/ Boiam/ Fazem bolhas / E bolinhas de sabão”. A proposta pode parecer despropositada, mas é neste tipo de ilusão infantil que os Tribalistas estão confortáveis, longe de reformas educacionais e refugiados, da mesma forma que antes cantavam sobre vaquinhas na manjedoura de Jesus que fazem “Blim blom, blim blom”. Aproveitando as palavras do caranguejo Sebastião:

“Você tem aqui no fundo/
Conforto até demais/
É tão belo o nosso mundo/
O que é que você quer mais?”

[“Baião do Mundo”:]

O álbum é despreocupado, quase blasé, e leve como uma brisa. Provavelmente é exatamente isto que o tumultuoso Brasil precisa em 2017, um merecido repouso. Quando proclamaram em 2002 que “o tribalismo pode ser e deve ser o que você quiser/ Não tem que fazer nada, basta ser o que se é”, convidaram qualquer pessoa para gerar desta música um espelho. Assim como nesse tempo, continua a não existir grandes contextualizações, ou camadas de significação metafórica, apenas pessoas que se jogam de cabeça para o amor numa rendição completa, e alguns bitaites sobre os tempos modernos. Para ouvir Tribalistas temos de fazer o mesmo: temos de nos render sem pensar muito. Vamos? Ainda é agosto.