“Sonhei que iria acontecer. Poucos dias antes de partirmos para a primeira das finais da Taça Sul-Americana na Colômbia, tive um pesadelo terrível. Quando acordei, contei à minha mulher que estava num acidente de avião. Eu estava na aeronave à noite e chovia bastante. Então o avião desligou. E caiu dos céus. Mas, de alguma forma, consegui me levantar dos destroços. Eu saí e estava numa montanha à noite. Estava tudo escuro. É tudo que eu me lembrei”, recordou o central Neto.

O defesa foi o único dos três sobreviventes do acidente que vitimou praticamente todo o plantel da Chapecoense a caminho da Colômbia que não viajou para Itália (por questões pessoais), onde esta quarta-feira uma delegação do clube liderada por Jakson Follmann e Alan Ruschel teve uma audiência com o Papa Francisco, no Vaticano (jogam esta sexta-feira com a Roma). “Não sei se vou ter a oportunidade de conversar com o Papa, mas se tiver com certeza que vou agradecer”, tinha referido Follmann. Teve mesmo. E agradeceu.

O trio aceitou recordar na primeira pessoa a fatídica noite de 26 de novembro de 2016 ao The Players’ Tribune, quando a queda do LMI2933 da LaMia vitimou 71 pessoas. Hoje, têm como guia a ideia de comemorar a vida sem nunca esquecer aqueles que a perderam. Os seus amigos. Tudo o que fazem e tudo o que dizem é a pensar neles e com eles. Agora, “vivem o hoje e entregam o amanhã a Deus”.

Vivia-se um ambiente de alegria. Follmann recorda a música e os jogos de cartas, Ruschel lembra-se de estar a fazer magia com as cartas e de ouvir pagode. Aquele era o grupo mais feliz do mundo porque, representando um clube modesto, ia disputar a final da Taça Sul-Americana. Era um feito daqueles que, por si só, dava direito a festa. Veio a turbulência. As orações em voz alta. A queda. O escuro completo.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Follmann diz que o momento mais triste foi quando, depois de ouvir os gritos da Polícia Nacional, percebeu que muitas das pessoas que clamavam por ajuda se tinham calado. Neto ainda pensou por momentos que se tinha lesionado num jogo. Ruschel não se esqueceu que o encontro com o Atl. Nacional era no dia seguinte. Quando perceberam o que se tinha passado na realidade, continuaram com a esperança de que fosse um pesadelo.

Há uma história menos conhecida contada por Follmann: por ser muito amigo de Alan Ruschel, a quem chama ‘Rato’ por ser muito magrinho, há mais de dez anos, insistiu para que se sentasse ao seu lado a ouvir música. O companheiro foi sempre dizendo que não, porque sempre preferiu viajar nos bancos de trás, para poder esticar as pernas e dormir. Naquele dia, a insistência resultou. E pode ter sido esse momento que lhe salvou a vida.

A emoção de Alan Ruschel, sobrevivente da Chapecoense, no regresso ao futebol oito meses depois

Neto foi o último a ser encontrado quando já ninguém acreditava na existência de mais sobreviventes, Ruschel não ficou tetraplégico por centímetros, Follmann esteve quatro dias em coma e teve de fazer uma amputação da perna. Sobreviveram. Deram a todos um exemplo de superação. E hoje querem simplesmente viver, apesar da tristeza e amargura que sentem quando se recordam dos amigos que partiram.

“Eu vivo o momento. Eu vivo por hoje. O amanhã pertence a Deus”, diz Follmann. “Se o acidente me ensinou uma lição, é a de que não sei o que vai acontecer nos próximos dez minutos. Se você realmente quer fazer alguma coisa, vai lá e faz, viva a vida ao máximo”, defende Ruschel. “Era para ter morrido naquele dia. Disse as minhas últimas palavras em voz alta e Deus deu-me uma segunda chance. Farei o melhor para honrá-lo e honrar todos os meus amigos que se foram”, salienta Neto.

“Este é um dia de graça para todos nós. O Papa Francisco sempre nos fez sentir o amor dele desde o trágico momento do acidente. No momento mais difícil da nossa vida, a sua proximidade deu-nos força para seguir em frente. Hoje a equipa está, a pouco e pouco, a recuperar das feridas e hoje recebemos a benção do Papa. Por isso, agradecemos a Deus”, resumiu no final do encontro David Plínio de Nês, presidente da Chapecoense.