Joaquim Leitão é, inquestionavelmente, um dos mais importantes realizadores do cinema português pós-25 de Abril. Fiel, desde o primeiro filme, “Duma Vez por Todas”, estreado há 30 anos, a um cinema de boa cepa narrativa e firme linha romanesca, adepto dos géneros tradicionais e aplicando-se a contar histórias com personagens credíveis e a envolver os espectadores nelas, Joaquim Leitão assinou, entre outros, a comédia que durante muitos anos foi o filme mais visto em Portugal depois da revolução (“Adão e Eva”); dois dos melhores filmes já rodados em Lisboa, e onde a capital é também uma personagem (o citado “Duma Vez por Todas” e “Uma Cidade Qualquer”); duas das raras fitas portuguesas sobre a guerra de África, uma lá passada (“20,13”), outra sobre as marcas que deixou nos que nela combateram (“Inferno”); adaptou livros tão díspares como “Até Amanhã, Camaradas” (este para televisão) e “Sei Lá”, e já filmou um policial, “Quarta Divisão”.

Sejam mais ou menos conseguidos, com maior ou menor recetividade do público, estes filmes refletem a personalidade, a regularidade, a coerência e a exigência do seu realizador, que trabalha há muito associado ao mesmo produtor, Tino Navarro, e procura seguir o rumo de um cinema comercial que não comprometa a qualidade. Um cinema que, num país maior, com mais meios, mais culto e com mais massa crítica do que o nosso, seria um bom modelo para uma produção “de indústria” a sério. Agora, em “Índice Médio de Felicidade”, Joaquim Leitão continua a tomar o pulso ao real e junta-se a realizadores como Miguel Gomes (“As Mil e Uma Noites”), Marco Martins (“São Jorge”), Teresa Villaverde (“Colo”) e Pedro Pinho (“A Fábrica de Nada”), fazendo também ele um filme sobre a crise e os seus efeitos na vida dos portugueses (um tema da atualidade a que o cinema nacional respondeu com rara abundância e variedade), com base num um livro de David Machado.

[Veja o “trailer” de “Índice Médio de Felicidade”]

E não é um título irónico, porque “Índice Médio de Felicidade” conta uma história de otimismo e esperança no meio da adversidade mais negra e aparentemente irreversível, centrada numa personagem que de repente ficou sem pé. Daniel (Marco D’Almeida) perdeu o emprego numa agência de viagens; perdeu a proximidade da família, porque a mulher viu-se obrigada ir para Viana do Castelo trabalhar para o café dos pais e levou o filho e a filha; perdeu a casa, e depois de viver no carro por uns dias, foi meter-se nas instalações vazias do antigo emprego; perdeu um dos melhores amigos, Almodôvar, que, em desespero, tentou assaltar uma bomba de gasolina; já desistiu de perder a paciência com outro amigo, Xavier, um depressivo maníaco de estatísticas que está fechado em casa há anos e criou o índice médio de felicidade do título. E está à beira de perder o ânimo, admitir a derrota a e ir juntar-se à família à província, por não haver resposta às dezenas de currículos enviados em todas as direções.

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[Ouça a canção-tema do filme pelos Xutos & Pontapés]

É aqui que “Índice Médio de Felicidade”, de um drama sobre a forma como a crise fustiga um pequeno grupo de pessoas comuns, se transforma num “road movie” inspirador, mas com excedente de sacarina e défice de verosimilhança. Num repente tão altruísta como simplista, que o argumento não justifica de forma convincente, Daniel mete o filho e a filha, mais o filho do amigo preso e o amigo depressivo na carrinha de um senhor reformado que conheceu na Net, e partem para Andorra ajudar uma portuguesa paraplégica que quer ir ver o irmão a um hospital em Barcelona. A credibilidade da história esboroa-se de vez quando Daniel, a meio do caminho, recebe um telefonema a dizer que conseguiu um emprego. E em vez de fazer o que qualquer pessoa responsável e sensata (como ele) faria – voltar de imediato para trás e agarrar a oportunidade com as duas mãos -, comporta-se como a personagem subitamente contraditória de uma ficção inverosímil (como acaba por ser o livro de David Machado, contaminando o filme) e vai concretizar a sua boa ação.

[Veja David Machado falar do seu livro]

A fita tem outro problema, também importado do livro: uma voz “off” omnipresente, insistente, que não se cala e se repete e acaba por se tornar insuportável, e que faz parecer que o filme não teve confiança suficiente nas suas próprias capacidades para transmitir por outros meios o que vem naquela verbalidade em jato contínuo – ou pelo menos atenuá-la (o facto do escritor também ter participado no argumento talvez explique isto). A solidez profissional da produção a que Joaquim Leitão nos habituou, a segurança da realização e algumas das interpretações (Marco D’Almeida, Patrícia André na mulher e os miúdos que fazem os filhos do casal, em especial Ana Marta Contente na filha, Flor, sobressaem no elenco) não são suficientes para garantir a “Índice Médio de Felicidade” uma classificação francamente alta no índice de satisfação do espectador. Acontece aos melhores.