Confesso que faço parte daquela minoria que, em 2010, aceitou bem o fim do LCD Soundsystem. Naquele momento, 8 anos depois do desconcertante “Losing My Edge” (que vai ficar como uma das melhores canções do início deste século porque é em si uma enciclopédia de referências e um retrato dos tempos), depois de projetados do underground de Nova Iorque para a fama suprema, depois de um disco como This Is Happening (e de uma canção como “You Wanted a Hit”, em que Murphy clama “but we don’t do hits, I’ve tried and I’ve tried and it feels kind of wrong”), percebia-se que era um bom momento para terminar a aventura.

“American Dream”, LCD Soundsystem (Sony)

O LCD Soundsystem tinha crescido demasiado, era maior do que a soma das partes, e todos os seus músicos tinham outras vidas, até James Murphy queria outra vida, e a pressão e expectativa exteriores estavam a esmagar tudo isso. Os festivais queriam “Daft Punk Is Playing At My House”, “North American Scum” e “All My Friends”, mas eles também eram “Beat Connection”, “Losing My Edge”, “Too Much Love”, “Someone Great”, grooves intermináveis sob texto existencialista, mais do que canções pop com riffs de guitarra. Parecia certo, e foi comovente, ser testemunha do fim amigável de uma banda no que era considerado o auge de carreira (tenho uma entrevista gravada com James Murphy em que ele afirma que se o LCD Soundsystem algum dia voltasse deviam dar-lhe “um murro na tromba” — só para se perceber até que ponto ele acreditava na decisão).

Por tudo isso, quando em Janeiro de 2016 foi anunciado o regresso, não posso dizer que tenha ficado excitada (quem não achou suspeito levante o dedo…) mas, tendo em conta todos os envolvidos, fiquei expectante. E agora que American Dream saiu (e que se sabe que Bowie, segundo Murphy, terá sido determinante na decisão ao desafiá-lo a lidar com esse desconforto de fazer a banda renascer — é importante ter aval superior para estas coisas, supõe-se), é evidente que valeu a pena o regresso.

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[“Tonite”]

A grande magia do LCD Soundsystem sempre foi expor, sem vergonha, de onde vinham, que música ouviam, quais eram as referências (a editora DFA, dirigida por Murphy, teve a mesma vocação). No fundo assumiram o “citacionismo”, evocando todas as bandas que admiravam e mais algumas (o que continua a manter entretidos os fãs mais geek no jogo do “esta linha de baixo lembra aquela, etc”). Apesar de carismáticos e infecciosos, há que admitir que nunca foram tremendamente originais porque, na verdade, estavam mais interessados em divertir-se a recuperar o espírito da música com que cresceram: pós-punk, punk funk, disco, vintage electronica, house e techno, rock desviado, pop experimental, tudo misturado com a atitude de quem, no séc. XXI, sai à noite para ir a clubes dançar, mais do que a salas de espectáculos para ver concertos (de resto Murphy sempre disse ter medo do palco).

E tudo com uma espécie de ética que assentava na honestidade, independência e sentido crítico em relação à indústria e à fama. No fundo, o mesmo que tinham professado os seus heróis desalinhados. Talking Heads, Liquid Liquid, The Fall, Gang Of Four, Manuel Gottsching… as referências sempre foram irrepreensíveis e até conseguem soar absolutamente novas para quem nunca as tenha experimentado antes, também porque o músicos que fazem o coletivo são extraordinários e tornam todo esse material alheio, seu, logo nunca antes feito (assim). Mas, acima de tudo isso — da forma, da execução, do jogo de referências — esteve sempre James Murphy, o homem e as dúvidas. As letras de Murphy são quase sempre desarmantes, frágeis na emoção final mas acutilantes na apresentação, tradução imediata de várias tonalidades da angst adulta no séc XXI.

[“American Dream”]

Foi assim na primeira encarnação da banda e tudo continua a ser válido em American Dream. O LCD Soundsystem continua tão bom e pertinente como sempre foi, se ouvirmos com atenção e nos reconhecermos nele (o que é relativamente fácil para quem tiver mais de 35-40 anos e tenha crescido com uma dieta de musical rica). As referências musicais são explícitas, as do costume e outras que emergem agora de forma mais clara, como os Suicide. “Oh Baby”, a primeira canção do disco, lembra “Dream Baby Dream” de Alan Vega/Martin Rev (aliás, o título é uma frase da canção e Murphy lembra mesmo Vega ao dizê-la), em “Other Voices” a linha de sintetizador também é decalcada de Martin Rev e a canção-título vem claramente do universo mais onírico dos Suicide.

Mas também há pós-punk europeu, sombras de Echo and the Bunnymen e Chameleons (“I Used To”), coros urgentes tipo Gang of Four (“Emotional Haircut”) até guitarras que lembram U2 (“Call The Police”). Brian Eno e David Bowie também pairam, o primeiro muito pela evocação do que fez com os Talking Heads (“Other Voices”, “Chang Yr Mind”), o segundo, um pouco por todo o lado mas, sobretudo, em “Blackscreen”, que James Murphy confessou ser sobre Bowie (Murphy foi convidado para fazer parte da produção de Blackstar, recusou, ao que se percebe por ter achado não estar à altura, mas acabou a tocar percussão).

[“Call the Police”]

Murphy continua inquieto e certeiro, rezingão também (em “Tonite” autoproclama-se algo como um “veterano perseguido pela inquisição das lojas de discos”), mas lúcido na perceção de si, dos outros e da América. “Call the Police” pode não ser a melhor canção do disco (é das mais pop, no entanto) mas é um retrato feio do país de Trump, antecipou mesmo o protagonismo entretanto ganho por milícias de inspiração neo nazi e não augura nada bom. “Tonite”, a canção mais longa e com a letra mais forte, parte da crítica à pop imediatista, ao culto vazio da “felicidade agora!”, para dar lugar às confissões de um homem que envelhece e tem consciência disso (Murphy sempre teve consciência da idade, formou a banda com quase 40 anos, no mínimo tinha mais 10, 15 anos do que seria expectável). “Tonite” é quase um novo “Losing My Edge”, meio auto análise, meio crítica dos tempos modernos, termina com, “It’s gonna have to be good enough, I can’t do this anymore, my brain won’t work” e nós sabemos que Murphy fala de si, do disco e desta nova vida do LCD Soundsystem e até apetece responder “it’s OK, it’s good enough!”

No subtexto de American Dream está o fim de muitas coisas, amores, sonhos, amigos, heróis (Bowie e Vega morreram o ano passado, talvez por isso seja tão fácil identificar os seus fantasmas), mas também a possibilidade de renascimento e a ideia de continuidade. American Dream pode não salvar ninguém, até porque não oferece propriamente redenção, mas é como uma segunda vinda do LCD Soundsystem e a mensagem que traz continua a fazer sentido — sobretudo para quem não acredita em profetas.

Isilda Sanches é jornalista e animadora de rádio na Antena 3