Assim deitada nos braços de Inês Aires Pereira, que vira a cabeça ligeiramente para a direita para a contemplar, Paula Porca não parece ser a mesma boneca atrevida que enche o imaginário dos homens da Avenida Q com um decote generoso e um assumido desejo por aventuras sexuais. Ainda no silêncio e escuridão dos bastidores, Inês endireita-lhe os caracóis loiros de nylon com os dedos, limpa-lhe as longas pestanas de pano e concede-lhe um pouco de decoro disfarçando o peito arredondado com as plumas fuschia. É trabalho infrutífero: quando a mão da atriz lhe dá vida, já no palco do Casino de Lisboa, Paula Porca transforma-se na mulher que todos os homens desejam ter, mas nenhum deles consegue conquistar. Na verdade, na Avenida Q, há muita coisa que fica por conquistar. Mas não é assim também em qualquer avenida da vida real?

Enquanto as pancadas de Molière não invadem o Casino de Lisboa, que recebe a segunda edição de uma peça irreverente da Broadway que conquistou 17.500 portugueses no início do ano, os bonecos ficam inanimados à entrada de um corredor escuro que dá acesso às traseiras do cenário de madeira. Vistos daqui, apenas iluminados pelas luzes de uma televisão com ruído que mostra uma imagem mal amanhada do palco, os sorrisos dos fantoches da Avenida Q e os olhos esbugalhados com que olham para o público ganham um semblante algo sinistro. Há um alvoroço de técnicos que folheiam os guiões, organizam adereços e, pelo meio, tiram o pó aos fantoches que fazem lembrar os bonecos da Rua Sésamo — mas passados muitos anos, quando as hormonas já os fizeram passar pela puberdade e desvendaram desejos sexuais, problemas existenciais, lábios carnudos e peitos cheios de algodão.

De volta aos bastidores, enquanto as personagens vão cantando para a plateia — “Na nossa rua nasce um novo dia e até o Sol nos faz companhia, não fossemos tesos e era uma alegria!” — a confusão continua como uma colónia de formigas. Os atores, vestidos de negro para não tirarem a atenção das cores neónicas dos bonecos, vão entrando e saindo do palco, substituindo uns fantoches por outros e tentando aliviar o calor limpando o suor com lenços. Aqui atrás, o mundo colorido e brilhante da Avenida Q transforma-se num universo profuso de artistas em correrias, bonecos em movimento, uma mesa de café coberta de papéis e um grande móvel com telefones, cabos, máquinas controladoras e joysticks em que não nos atrevemos a mexer. Do um lado do móvel continua, uma vez mais, o olhar sombrio de bonecos que em palco são uma extensão dos próprios atores, que parecem ter gosto também em arrumá-los, penteá-los e limpá-los. Do outro, o pianista vira a folha e desvenda uma pauta musical em que as notas parecem equações matemáticas complicadas. Quando as começa a ler, tudo parece mais simples: é só música.

No palco, a vida desses mesmos bonecos vai sendo criada ao ritmo de um piano pendurado entre dois bidões enferrujados. Vista a partir da plateia, a Avenida Q parece a Mouraria: tem meias amarelas penduradas no estendal, azulejos arrancados das paredes e um símbolo da Sagres junto a um caixote de lixo mais sujo que o lixo que leva lá dentro. Entre as fictícias portas cinco e nove, os atores caminham de um lado para o outro como loucos de Lisboa. Produzem sons estridentes, imitam os tenores dos coros da igreja e alguns emitem barulhos que ninguém consegue entender muito bem o que são.

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Entre os grunhidos com que abrem as gargantas para dar voz aos bonecos, vão cantando êxitos de Bon Jovi ou de Bryan Adams na escala de sol, de fá e de uns quantos bemóis e sustenidos que só um ouvido muito treinado pode distinguir. Quando o piano começa a tocar Bonnye Tyler, alguém grita, já embalado na canção: “Esta é que é a minha Madonna! Turn around, every now and then I get a little bit lonely and you’re never coming round“. Enquanto aquecem a voz, os artistas procuram também preparar os músculos. Entre uma canção e outra, todos esticam as pernas e rodopiam os braços com exercícios dignos de um filme de exorcistas: contorcem os pulsos, viram braços ao contrário, fazem flexões e estalam partes do corpo que não sabíamos existir. É o preço de passar demasiadas horas a dançar, cantar, interpretar e dar vida a bonecos inanimados, tudo ao mesmo tempo. Na edição passada, este malabarismo de atividades valeu a oito atores umas quantas tendinites.

Para quem cresceu com cassetes VHS da Rua Sésamo debaixo de uma televisão com o vidro ainda arredondado, há uma certa nostalgia da infância em ver uma luz lilás a invadir o palco e dar vida a bonecos tão parecidos com o Egas e o Becas, o Monstro das Bolachas ou o Ferrão. É fácil esperar que do palco venha aquela canção que dava início aos desenhos animados dos anos 90: “O Sol nasceu, como está lindo o céu!”. Mas quando a cortina negra, pesada e aveludada abre para a plateia, desvendando ao público o motivo das gargalhadas que se ouviam atrás dela, este espetáculo recorda-nos que já se passaram 20 anos, que o céu afinal não é assim tão azul e que, às vezes, o Sol nasce para trazer mais um dia a viver com os problemas de quem deixou de ser criança, mas ainda não sabe bem ser adulto.

Aqui na Avenida Q toda a gente convive com um sufoco: Luís é um recém-licenciado sem trabalho, Marta é uma monstra que nunca encontrou o amor, Paula é uma porca — e não há maneira melhor de a descrever –, Trekkie é um tarado viciado em pornografia e Félix é um gay que nunca conseguiu sair do armário . De repente, a criança que ainda existe em nós é destruída pelos problemas da vida real que se personificam nestes bonecos saídos de uma fábrica de Alcobaça. A melhor parte disto tudo? A Avenida Q sabe rir da própria desgraça.

É por isto que, para Sandra Faria e Gonçalo Castel-Branco, dois membros da produção da peça em Portugal, a Avenida Q tem tanto sucesso junto de um público que nunca teve o hábito de ir ao teatro: “Este espetáculo é terapêutico, é como uma sessão de psicanálise”, descrevem em conversa com o Observador. É daí que vem o sucesso da peça em Portugal, mas não só: “Nós apanhámos aquele momento da atualidade em que tudo conspirava para o sucesso da peça”. De repente, assuntos que pareciam pertinentes em 2003 — quando a peça foi escrita nos Estados Unidos — voltaram a ser importantes em 2017. De repente, as pessoas precisavam de falar de coisas sérias — racismo, homofobia ou desemprego — com um pouco de brincadeira pelo meio. De repente, o “politicamente incorreto” fazia sentido junto a uma geração que tinha passado a infância a ver os Marretas e a adolescência a ver Morangos com Açúcar. Agora, esse público não tinha nada que aliasse as suas dúvidas existenciais à energia que ainda tinha para gastar. E então apareceu a Avenida Q.

Não foi tarefa fácil, admitem Sandra Faria e Gonçalo Castel-Branco ao Observador: “Achávamos que era impossível trazer esta peça para Portugal porque parecia desatualizada e não sabíamos se havia conhecimentos suficientes para tal”. Havia. Encontraram atores “de muita qualidade e muito unidos” e encontraram também um especialista que os ajudou a interpretar personagens através de um pedaço de pano. Aprenderam a coordenar a boca do boneco com as falas que eles deviam veicular e assim emprestar ao fantoche as próprias expressões, os próprios movimentos e linguagem. Uma linguagem que, dizem os produtores, não é apropriada para crianças. “Eu trouxe as minhas filhas a ver a peça e acho que isso faz de mim um péssimo pai”, afirma Gonçalo. Embora toda a gente possa assistir ao espetáculo, a peça está recomendada para pessoas com mais de 16 anos — a não ser que esteja preparado para explicar ao seu filho, que acabou de ver vídeos da Patrulha Pata no YouTube, o que é sexo anal ou que nem sempre um canudo é sinónimo de sucesso profissional.

De volta aos bastidores, enquanto espreitamos um grande quadro com uma fotografia do elenco na primeira edição, alguém nos pega pelos ombros e empurra-nos para um canto: a seguir, passam dois atores a uma velocidade alucinante que entram no palco aos gritos. Estávamos no caminho deles, mesmo por cima das setas brancas que indicam um dos corredores de passagem para o palco. Passado pouco tempo, sons estranhos começam a ecoar nas nossas costas. “Oh Marta, é este o buraco? É este o buraco, é sim!”. O que restava da nossa inocência desmoronou-se naquele momento: atrás de nós, numa cama com lençóis brancos, Marta Monstra e Luís iniciavam um momento de paixão assolapada e barulhenta que se arrastou dos bastidores até ao palco. Foi um chinfrim. De repente, os mesmos bonecos que nos haviam ensinado a contar até 20 na RTP estavam agora a experimentar todas as posições do Kama Sutra perante o olhar atento dos vizinhos.

Não vimos o ensaio completo. Em primeiro lugar, porque o verdadeiro ensaio só começava às 21h30, como anunciou alguém do outro lado do cenário, enquanto os atores acenavam para a plateia e nos aconselhavam a “fazer um chinfrim” quando saíssemos dali. E em segundo lugar porque é impossível assistir a excertos da Avenida Q sem chorar a rir. O espetáculo regressa à capital esta quinta-feira no Casino de Lisboa com sessões às 21h30 entre quinta e sexta e com uma sessão adicional às 16h30 aos domingos. Vai estar também no Teatro Sá da Bandeira, no Porto, a 11 de fevereiro. Os bilhetes custam entre 14 e 18 euros.