Soa melhor dito em português do Brasil, com as vogais abertas, as sílabas saboreadas, a língua sorvendo os 10 versos e as 61 palavras de um breve poema chamado No Meio do Caminho, escrito em 1928, por Carlos Drummond de Andrade, que desencadeou uma tempestade bíblica no meio cultural brasileiro. Sobre ele escreveram-se rios de artigos, críticas, caíram dilúvios de insultos, cartas, teses, glosas, sonetos, anedotas, “bobagens”. Em nome de uma pedra quis esmagar-se a ousadia do poeta com vários pedregulhos. Mas era tarde e Carlos, esse que nasceu “gauche na vida”, tinha aberto a porta do Modernismo, como poucos anos antes o nosso Almada Negreiros tinha o tinha gritado na também singela declaração: Morra Dantas. Morra. PIM!

O trio de atores: Chico Diaz, Cassiano Carneiro e Rita Loureiro. Fotografia:Maria Antunes

O curto-circuito provocado pela chegada do Modernismo e a sua indisciplina, as suas ruturas, a força com que deslocou as placas tectónicas da arte, é relembrado pelo Teatro do Bairro. O espetáculo, Biografia de um Poema, que conta com os atores brasileiros Chico Diaz e Cassiano Carneiro e com a atriz portuguesa Rita Loureiro, estreia-se esta terça, dia 13, e fica em cena até 8 de outubro.

A personagem principal é este poema, escrito há quase 100 anos…

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

… e que fica magicamente a martelar na cabeça de quem o lê, como se o seu jogo de pedras, repetições, evidências e enigmas fizesse saltar uma mola no nosso cérebro. A sua força que não cessou de crescer ao longo do tempo, o que mostra a genialidade de Drummond, um autor hoje mitificado mas pouco lido, que foi fundamental para os poetas hoje idolatrados, como Alexandre O’Neill, Mário Cesariny, António Ramos Rosa ou mesmo para o romancista José Cardoso Pires, que depois do 25 de Abril, fez uma glosa pungente do E agora José? Pois é, sem Drummond, sem a sua pedra, a sua rosa, a sua chuva oblíqua, os seus inventários, os seus Josés, os seus bondes perdidos, o seu ritmo, sem isto a geração de poetas dos anos 50 não seria o que é. Porque sendo Fernando Pessoa ainda pouco divulgado e os movimentos Presencista e Neorealista demasiado autoritários, Drummond foi a salvação dos inadaptados, foi o segundo modernismo português, com sotaque do Brasil.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Para além de indisciplinador, poeta, romancista, jornalista, funcionário público, Drummond cultivava uma saudável ironia aliada a um espírito arquivista e um fascínio pela memória. Foi essa composição sui generis que o levou a guardar, durante 40 anos, tudo o que saiu na imprensa, na academia, nos panfletos, sobre o seu poema No Meio do Caminho, que é como quem diz, sobre aquela pedra que ele achou e resolveu usar para baralhar as regras gramaticais e os espíritos. Desde elogios, rebuscadas exegeses, generosas tentativas de explicação até insultos de baixo nível, todas essas “pedras” Drummond recolheu e com elas fez Biografia de um Poema, livro de 1967, que serve de base a esta peça, onde António Pires mostra como esta biografia é também uma autópsia, pois ali o poema foi tão dissecado que, dir-se-ia, nada restar dele. Pode o poema ser decomposto nas suas múltiplas partes sem ser irreversivelmente destruído? A polémica é aniquiladora ou rejuvenescedora da arte e da poesia? O debate está lançado e Pires, como Drummond, atiram para o público a resolução do enigma.

Chico Diaz encarna o poeta Carlos Drummond de Andrade

Num cenário feito de linhas depuradas, que poderia ter saído do modernismo da Bauhaus, a peça faz surgir em palco um poema, seus amantes e seus detratores e o fantasma de um poeta. Vestidos de branco como autopsiadores os três atores colocam o poema numa maca, puxam do bisturi da ironia e fazem ressoar uma polifonia de vozes prontas a cortar como a de Gondin da Fonseca:

“O sr. Carlos Drummond é difícil. Por mais que esprema o cérebro não sai nada. Vê uma pedra no meio do caminho — coisa que todos os dias sucede a toda a gente (mormente agora que as ruas da cidade inteira andam em conserto) e fica repetindo a coisa feito papagaio. Homem! E não houve uma alma caridosa que pegasse nessa pedra e lhe esborrachasse o crânio com ela?” Gondin da Fonseca, Biografia de Um poema

Porque diz sentir que “já não há polémicas férteis” como esta, porque hoje tudo o que se faz é rapidamente emparedado num muro de silêncio e indiferença e “é rapidamente apagado sem deixar rasto”, porque “as únicas polémicas dos dias de hoje são nas redes sociais e apenas revelam superficialidade e falta de conhecimento”, António Pires quis colocar em palco uma boa e velha polémica, para que não nos esqueçamos de como é.

O ator Chico Diaz, conhecido pela sua participação em várias telenovelas brasileiras, veio a Lisboa de propósito para esta peça. Contou ao Observador que no Brasil “arregalaram os olhos e espanto e admiração” quando souberam que em Lisboa se encenava Drummond. Porque lá como cá as muitas honrarias e estátuas nas praças são sempre sinónimo de ritual fúnebre: “No Brasil Drummond só se lê nas escolas porque é obrigatório. Há anos que não há reedições, que não se revisita e atualiza a obra dele”, conta ainda o ator. Em Portugal, a editora Companhia das Letras lançou, no início deste ano, uma das suas obras mais importantes A Rosa do Povo, inédita no nosso país.

A peça está em cena de quarta a sábado, às 21h30, e domingos às 17h00, até 8 de outubro.