A polémica não esperou pelo fim para estalar. Juncker estava a meio do seu discurso sobre o estado da União quando definiu as fronteiras da União Europeia. “Não se iludam, a Europa estende-se de Vigo a Varna. De Espanha à Bulgária.” Escapou uma parte do território europeu ao presidente da Comissão — em particular aquela parte em que Portugal se inclui. “Já assumiu que estamos de fora?”, questionou, com ironia, a eurodeputada Marisa Matias (Bloco de Esquerda), na sua conta twitter. Juncker seguiu a sua navegação, entre o balanço de contas e o que ainda está para vir.

Depois da tormenta, a Europa tem de “aproveitar os ventos que sopram de feição“. Durante mais de uma hora, o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, prestou contas aos eurodeputados sobre o último ano de trabalho do executivo europeu, pediu colaboração ao Parlamento para transformar as intenções em leis e lançou a carta de navegação dos próximos 16 meses.

Junker propôs mudanças na orgânica do executivo europeu, atirou a Europa para a liderança do combate às alterações climáticas, defendeu a integração dos (em breve 27) Estados da União na moeda única e juntou tudo num roteiro que enviou aos presidentes do Parlamento e do Conselho Europeu (cujo cargo, aliás, quer ver desaparecer).

O mesmo presidente da Comissão que há meio ano lançou os cinco cenários possíveis para o futuro da União desenhou agora um sexto — o de uma Europa mais unida, mais forte e democrática. E foi precisamente nesse contexto que surgiram as principais novidades de Juncker para o futuro da União mas que, em parte, não acolhem apoio no seio da sua própria família europeia (é o caso da proposta para criar “listas transnacionais” ao Parlamento Europeu).

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União Europeia, União Monetária. Todos no mesmo barco

Foi um d0s desejos expressos por Jean-Claude Juncker no seu discurso: que todos os países da união política europeia passem a integrar a união económica e monetária. Numa frase, que união europeia e união do euro sejam uma e a mesma coisa.

“O euro foi pensado para ser a moeda única da União Europeia como um todo.” Foi essa a formulação que Juncker usou para puxar os Estados que estão fora do euro para dentro do clube e alargar a integração económica aos (futuros) 27 países. Porque “se queremos que o euro una, em vez de dividir, o nosso continente, então ele deve ser mais do que a moeda de um grupo seleto de países”, disse. A ideia faz parte do tal sexto cenário que o presidente da Comissão idealizou para o futuro do projeto europeu e que se inclui num dos princípios basilares desse cenário, o de uma Europa mais unida.

A trabalhar para esse princípio global estão outras ideias, que passam por uma abertura “imediata” do espaço Schengen à Roménia e à Bulgária — num momento em que vários são os Estados europeus que fecharam as suas fronteiras como forma de evitar a entrada dos milhares de refugiados e migrantes vindos do norte da Europa e do Médio Oriente e que, na prática, estão, por isso, fora do espaço Schengen; mais integração significa também permitir que a Croácia seja um dos países Schengen “de pleno direito”; significa, ainda, mais países na União Bancária; e passa por garantir que há menos fragmentação e dumping social (o que pressupõe a adoção do Pilar Social Europeu dos Direitos).

Temos primeiro de mudar a mentalidade de que para alguns ganharem, outros têm de perder. A democracia tem a ver com compromisso. E o compromisso certo torna todos vencedores, defendeu o presidente da Comissão Europeia.

Para concretizar o seu plano de alargar a zona euro às fronteiras da União Europeia, Juncker propõe a criação de um mecanismo de adesão ao euro, que ofereça assistência técnica e financeira. O presidente da Comissão Europeia termina o seu mandato em 2019. O relógio está a contar.

“Jean-Claude Tusk”: um só presidente da União

Juncker lançou a proposta e rapidamente passou às explicações. Em vez de um presidente da Comissão Europeia e de um presidente do Conselho Europeu, a União Europeia devia ter apenas um homem ao leme (para aproveitar a inspiração náutica que o luxemburguês apresentou no seu discurso deste ano).

“Isto não é nada contra o meu bom amigo Donald [Tusk], com quem trabalhei nos últimos três anos. Isto não é nada contra o Donald nem contra mim”, justificou Juncker — que, aliás, já deixou claro que não estará disponível para mais cinco anos à frente do executivo europeu e que será, por isso, um homem de um mandato só.

Trata-se, justificou o presidente da Comissão, de uma questão de perceção. “A Europa seria mais bem compreendida se um capitão estivesse a comandar o navio; ter um presidente único refletiria melhor a verdadeira natureza da União Europeia como uma união de Estados e de cidadãos”, defendeu.

O segundo maior grupo em Bruxelas, os Socialistas & Democratas Europeus (do qual faz parte o PS) não fecharam a porta, mas sublinharam um princípio. “Temos de garantir a investidura popular” dos candidatos a esse novo lugar único.

O ministro das Finanças e da Economia europeu

É o lugar para o qual Mário Centeno já foi apontado como fazendo parte da shortlist de candidatos. A ideia não é, já se percebeu, nova, mas foi agora defendida abertamente por Juncker. Não se trata de uma mudança só porque sim, garantiu Juncker. A ideia é encontrar um super-ministro da zona euro (que pode vir a expandir-se rapidamente) que leve as “reformas estruturais” aos vários Estados-membros de forma coordenada.

É, portanto, uma questão de “eficiência”, disse o presidente da Comissão. Esse novo ministro, a existir, “deverá coordenar todos os instrumentos financeiros da UE que podem ser aplicados quando um Estado-membro está em recessão, ou é atingido por uma forte crise”. Seria, ao mesmo tempo, um vice-presidente da Comissão, presidente do Eurogrupo e teria de prestar contas perante o Parlamento Europeu.

Na mesma linha, e porque a união monetária se deseja alargada a toda a União, Juncker desdenhou a ideia de que a zona euro seja dotada do seu próprio parlamento, independente do Parlamento Europeu. “Não precisamos de estruturas paralelas.”

Este ponto corresponde às medidas que permitirão chegar a uma “união mais forte”, dentro do sexto cenário que Juncker antevê para o futuro da Europa. Nesse ponto surgem, também, as preocupações com o combate ao terrorismo. E, por arrasto, a proposta para que seja criado um serviço de informações europeu — que garanta que os dados sobre terroristas são rapidamente partilhados entre serviços de informações e forças de segurança nacionais — e uma procuradoria europeia — porque os crimes, hoje, atravessam fronteiras (como se viu, por exemplo, com o ataque ao Charlie Hebdo).

Além disso, Juncker quer uma União da Defesa 100% operacional até 2025. “Nós precisamos dela. E é o que a NATO deseja”, considera Juncker.

Clima e outras quatro prioridades imediatas

As propostas da Comissão vão chegar “em breve”, mas a ideia geral está lançada: a Europa deve ser líder no que respeita ao combate às alterações climáticas, defende o luxemburguês. Até ao final do próximo ano, há outros quatro objetivos que o presidente da Comissão deseja ver cumpridos.

À cabeça, a imigração, um tópico com matizes que o discurso de Juncker não escondeu. Por um lado, a Europa precisa de se rejuvenescer. Esses milhares de crianças, jovens e jovens adultos que procuram a segurança do continente europeu são uma solução a uma “necessidade” premente.

Por outro lado, há imigrantes “ilegais” que “não têm direito” de permanecer em território europeu. Solução? “Devem ser devolvidos aos seus países de origem.” Mais, o facto de apenas 36% dos imigrantes que chegam à Europa serem enviados para trás pelas autoridades europeias mostra que é preciso “fazer mais” nesse sentido. “Esta é a única forma para que a Europa seja capaz de mostrar solidariedade com os refugiados em verdadeira necessidade de proteção.”

Essa solidariedade deve estender-se a esses países de origem. Traduzindo: mais dinheiro para África e Médio Oriente mas, também, maior exigência sobre as condições em que os refugiados são acolhidos nos centros líbios. “Fico chocado com as condições desumanas dos centros de detenção e receção” no país, disse Juncker.

Outras prioridades imediatas: fortalecer a indústria europeia, reforçar a agenda de acordos comerciais (Japão, México, vários países da América do Sul, etc.), que devem estar concluídos até ao final do próximo ano, e reforço da proteção dos europeus na era digital.

Financiamento de partidos, regras mais apertadas para comissários e um roteiro

O caderno de encargos e propostas que Juncker apresentou no Parlamento Europeu continua. Mas nem todas mereceram o apoio da sua família. Exemplo: as listas transnacionais para os candidatos nas eleições europeias, como caminho para uma “União mais democrática”. O Partido Popular Europeu torceu o nariz — não há necessidade, disse o presidente do grupo, Manfred Weber.

O presidente da Comissão já estava consciente de que a ideia não reunia propriamente muitos simpatizantes quando a apresentou no plenário, ainda que considerasse que as eleições europeias seriam mais democráticas com essa mudança (no fundo, permitir que deputados de diferentes países se apresentassem a votos em Portugal, ou o contrário). Se é certo que “o Parlamento Europeu é mais do que 27 eleitorados nacionais”, não é será menos verdade que “a larga maioria” dos eurodeputados “mostra claramente que não somos apenas deputados nacionais e que fazemos o melhor pelo interesse de todos nós”, respondeu Weber.

A pensar nas eleições europeias, Juncker anunciou um novo código de conduta para os comissários que prevê que os elementos do executivo europeu possam concorrer ao sufrágio “nas mesmas condições que todos os outros” candidatos.

Boa parte das ideias que levou ao plenário constavam do roteiro que o presidente da Comissão Europeia enviou, ainda antes do discurso, aos presidentes do Parlamento Europeu, Antonio Tajani, e do Conselho Europeu, Donald Tusk. Será para cumprir até março de 2019. Uma data longe de ser casual. É o momento zero, o dia em que o Brexit sai do papel e o Reino Unido deixará de fazer parte da União Europeia.

Será um dia triste e um momento trágico. Vamos arrepender-nos dele para sempre. Mas temos de respeitar a vontade do povo britânico”, defendeu Juncker.

Depois do Brexit, o futuro da União. A 30 de março de 2019, será uma união a 27. E as eleições para o Parlamento Europeu vêm logo depois. “Os europeus têm um encontro com a democracia” nesse dia e “precisam de dirigir-se às urnas com uma clara compreensão de como a União Europeia vai desenvolver-se nos anos seguintes”. O estado da União serviu também para isto: começar a fazer o luto da separação e olhar para a frente.