Consegue imaginar um grupo de crianças e adolescentes a contar, numa peça de teatro, a história de um pedófilo violador e assassino em série? É precisamente isso que acontece em “Five Easy Pieces”, de Milo Rau, e que este fim de semana chega ao Teatro Maria Matos, em Lisboa, e nos próximos dias 22 e 23 ao Teatro Municipal do Porto.
O convite partiu da produtora belga CAMPO, mas foi o próprio encenador suíço quem escolheu contar a história de Marc Dutroux, o belga condenado em 2004 a prisão perpétua pelo rapto e violação de seis raparigas, entre 1995 e 1996, com idades compreendidas entre os oito e os 19 anos, quatro das quais foram assassinadas.
“Era uma coisa que eu queria fazer há muito tempo. Há cerca de 15 anos que faço co-produções com a Bélgica e por várias vezes me falaram do caso Dutroux. Disseram-me que era a única coisa que todos os belgas irão recordar para sempre, como se fosse um trauma nacional“, explica Milo Rau, numa entrevista por telefone ao Observador.
A peça, cujo nome vem da obra que o compositor russo Igor Stravinsky fez no início do século XX para os seus filhos aprenderem a tocar piano, está divida em cinco partes. A história de Marc Dutroux é contada por sete crianças, entre os nove os 14 anos, que interpretam várias personagens ligadas ao caso: o pai do homicida, um polícia, uma criança raptada por Dutroux e presa na cave de sua casa, e os pais de uma outra vítima — nenhuma delas interpreta Marc Dutroux.
É uma peça sobre aprender a viver e aprender a representar”, refere Milo Rau, que dirige a companhia International Institute of Political Murder (IIPM) .
Mas até que ponto não é traumatizante para uma criança contar uma história tão violenta? Milo Rau garante que a complexidade do caso foi tida em conta, tanto que houve psicólogos envolvidos na produção para perceber qual a melhor forma de abordar esta questão com as crianças. Os pais dos jovens atores também acompanharam de perto todo o processo. “Não se pode fazer um casting de crianças sem antes fazer um casting dos pais. Tudo o que experimentámos e que não estava no texto, perguntámos-lhes antes.”
O encenador, contudo, não estava à espera que as crianças soubessem tanto sobre o caso e estivessem tão “à vontade” com o caso Dutroux.
Fiquei chocado. Eles estavam mais preparados do que eu imaginava. Para eles é uma história antiga“, considera o suíço. “Ficaram impressionados quando souberam que o pai de Marc Dutroux vivia em frente ao teatro onde ensaiávamos e isto torna a história de alguma forma contemporânea, mas eles representam-na como se eu representasse Ricardo III [uma peça de William Shakespeare].”
Para o encenador, esta peça é acima de tudo uma “alegoria” que, além de retratar o caso Dutroux, serviu como “escola de atores” para este grupo de crianças e adolescentes, levando-os a representar situações e sentimentos limites, sobre os quais não têm qualquer conhecimento, “de uma maneira muito pura e naïve“.
“Eles interpretam pais que perderam um filho. Se fosse comigo, que tenho 40 anos e duas filhas, fá-lo-ia com mais experiência, mas eles não podem. Eles têm mesmo de representar e com isso mostram a força do teatro. Era isso que estava interessado em mostrar: o enigma do teatro, a forma como alguém pode mudar completamente e tornar-se noutra pessoa. No fundo, é transmitir emoções que eles não conhecem para o público que sente estas emoções ao ver uma criança interpretá-las.”
Milo Rau sublinha ainda o peso que o caso Dutroux teve na vida das crianças. “As crianças são de alguma maneira o objeto desta história, porque a vida delas mudou muito depois de Dutroux. Começou a paranoia, a pedofilia tornou-se o principal tabu da nossa sociedade, mudou o que é ser criança e mudou a relação das crianças com os adultos e a relação entre a sociedade e o Governo.”
“Five Easy Pieces” estreou em maio do ano passado e desde então passou em vários palcos europeus. Em alguns, não foi bem aceite. Em Frankfurt, por exemplo, não foi possível fazer a cena em que uma das atrizes, que interpreta uma das vítimas de Dutroux presa numa cave, está praticamente nua (fica apenas de cuecas) em palco — para o encenador, isto é mais um exemplo da “paranoia” que surgiu após o caso Dutroux.
“Tal como aconteceu em noutras peças que fiz, a revolta é algo que acontece antes da estreia. Depois de a verem, e em particular neste caso, as pessoas ficam comovidas e veem que resultou. Temos noção que pode causar este tipo de reações, mas tentámos fazer uma peça que consiga lidar com estas emoções negativas e de revolta e que as absorva.”
Mas se a peça pode chocar alguns espectadores, pode-se assistir ainda a um “momento catártico”, isto é, a peça demonstra que é possível seguir em frente apesar de uma história tão marcante e trágica. “Há uma verdade mórbida nesta história, mas há também um significado poético na forma como estas crianças a representam e continuam a viver. Acho que é algo que tem de ser feito com uma série de traumas: não os esquecer, mas relembrá-los e seguir em frente. E é isso que a peça faz.”