Título: “As Nossas Almas na Noite”
Autor: Kent Haruf
Editora: Alfaguara

“As nossas almas na noite”, último romance de Kent Haruf — morreu pouco tempo depois de entregar as correcções ao texto — é uma ficção breve sobre um homem e uma mulher, dois viúvos que se relacionam e se enamoram um do outro já depois dos 70, quando a comunidade a que pertencem desejaria que esperassem pelos últimos dias a remoer memórias, cada um no seu canto. Haruf não demora tempo algum a apresentar a situação em que se encontram os personagens. É como se a urgência em viver nos últimos dias tivesse tido uma correspondência no gesto de lançar uma narrativa essencial de um modo directo: “E então chegou o dia em que Addie Moore se decidiu por Louis Waters. Foi num final de tarde de Maio, mesmo antes de escurecer por completo”. Addie é a mulher que, decidida a evadir-se do que as pessoas possam pensar sobre os seus gestos, propõe a Louis, um ex-professor de liceu, seu vizinho, que durma em sua casa. O motivo é-lhe apresentado também de um modo desconcertantemente claro:

“Estamos sozinhos há demasiado tempo. Há anos. Sinto-me só. Pensei que tu também pudesses sentir o mesmo. Imaginei que pudesses ir lá a casa e dormir comigo à noite. E conversar”.

É isso, apenas isso. E basta. Este é um livro sobre a possibilidade de um apaziguado encontro após o fracasso – quer um, quer outro tiveram um passado de falhanços sentimentais que demoraram décadas. E é no aconchego de poucas palavras, numa casa de uma pequena cidade ficcional do Colorado, Holt, misto de cidades onde o autor habitou, que o tempo vai passando e a partilha vai acontecendo – de episódios vividos, de inquietações actuais. Sim, como é hábito na tradição americana e no imaginário deste autor, a geografia e o seu ambiente próprio contam. A acção é localizada em território delimitado, com todos os problemas que isso traz. Um dos temas tratados é o da mesquinhez provinciana circundante, de quem não aceita que estas duas pessoas se juntem. Há cochichos sobre o assunto. E o transtornado filho de Addie torna-se no maior opositor ao namoro da mãe, chegando a intrometer-se na relação entre a avó e o neto, um rapaz assustado, desabrigado, a precisar de um ninho.

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Um elogio mais do que merecido para a mão de Haruf, para o seu talento em criar frases com as palavras-notas certas (traduzidas, com respeito por esse dicionário despojado, por Paulo Ramos), a fazer lembrar a precisão que se associa à escrita de um Raymond Carver. Há também aqui um certo “dirty realism” na económica descrição de idas ao supermercado, na referência a marcas de chocolates e escovas de dentes, uma intenção de nomear o concreto sobre o qual acontece esta alegria breve. São conseguidos estes diálogos, naturalistas, mas suficientemente discretos para não caírem em açucaradas reflexões sobre o sentido da vida. Há aqui clichés, sim, mas aqueles clichés de todas as existências, necessários para aludir a qualquer relação amorosa, qualquer vida que traga consigo a cauda fantasmagórica do passado. À capacidade para pôr as personagens a falar sobre temas decisivos sem parecerem sábias e definitivas, junta-se um ingrediente humorístico, que tira peso a qualquer vertigem por um tom sentencioso. Durante um telefonema, Louis pergunta se está a experienciar um contacto preparatório para um encontro sexual. Addie responde com um misto de ironia e ternura: “São apenas duas pessoas de idade a conversar às escuras”.

Este é o último de seis romances – entre eles The Tie That Bind e Plainsong, finalista do National Book Award e editado em Portugal, pela Dom Quixote, com o título Canto Chão — de um autor nascido em 1942, em Pueblo, no Colorado, que só publicou o primeiro livro quando tinha 41 anos. A sua trajectória humana e literária ficou fixada em 2014 quando publicou na Granta um ensaio que é um tratado sobre a importância do esforço e da reclusão na arte da escrita. “As nossas almas na noite” foi adaptado a filme por Ritesh Batra, com produção da Netflix e Jane Fonda e Robert Redford nos papéis principais, tendo-se estreado há dias no Festival de Veneza.

Nuno Costa Santos, 41 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.