Poucos actores se podem gabar de Debbie Harry lhes ter dedicado uma canção (“I Want That Man”) e depois terem ido para a cama com ela. De terem não só entrado num filme de e com Bob Dylan (“Renaldo e Clara”), como também de terem tocado e gravado com ele. De serem amigos do peito de Jack Nicholson. De haverem sido ameaçados com uma faca e com uma pistola por Sam Peckinpah, quando rodavam com ele. De terem ensinado Paul Newman a cantar para fazer um papel numa fita. De terem estado em palco com Kris Kristofferson e Willie Nelson. De terem sido dirigidos por realizadores tão díspares como Peckinpah, Monte Hellman, John Carpenter, Ridley Scott, Francis Ford Coppola, John Milius, Martin Scorsese, David Lynch ou Paolo Sorrentino. De, chegados, a octogenários, terem sido objecto de um documentário biográfico (“Partly Fiction”, de Sophie Huber). De sempre terem fumado como uma chaminé industrial e chegado aos 91 anos. Harry Dean Stanton, que morreu na sexta-feira, podia gabar-se de tudo isso.

Stanton, que parecia já ter nascido precocemente envelhecido e vítima de subnutrição, era um daqueles actores “característicos” na mais velha, rica e castiça tradição do cinema americano, o último da geração que combateu na II Guerra Mundial e foi depois atraída pela representação. O chamado “secundário principal”, que podia aparecer num filme apenas entre 5 e 20 minutos, mas nunca mais era esquecido. Para ele, não havia papéis pequenos, quer em filmes memoráveis, quer em filmes mais indiferentes (e fez muitos destes, antes e depois de se tornar conhecido). As grandes “estrelas” masculinas de Hollywood podiam ter o carisma da sua beleza, da sua virilidade, da sua afabilidade ou da sua fotogenia. Harry Dean Stanton tinha o carisma de ser escalavrado.

[“A Estrada Não Tem Fim”, 1974]

A magreza, a cara chupada, o ar desmazelado e de quem já viveu muito e apanhou muita pancada da vida mas também ganhou muita experiência, e ainda os seus olhos expressivos e tristes, tornaram-no ideal para os papéis de vilão, de “loser”, de malfeitorzeco, de solitário ou de esquecido ou enganado pela sorte, do tipo que morria nos primeiros 15 minutos do enredo. Foi a partir de meados da década de 60, já com muito trabalho feito em filmes e na televisão, e graças à sua amizade com Jack Nicholson, que o recomendou a Monte Hellman para um papel de pistoleiro no “western” “O Furacão” (1966), que começou a sua lenta ascensão no cinema, aparecendo em fitas como “A Estrada Não Tem Fim”, também de Hellman (1974), “Dillinger”, de John Milius (1973), “Duelo na Poeira”, de Sam Peckinpah (1973), “O Padrinho-Parte II”, de Francis Ford Coppola (1974), “Duelo no Missouri”, de Arthur Penn (1976), “Beco Sem Saída”, de Ulu Grosbard (1978) e, fechando a década em grande, “Sangue Selvagem”, de John Huston, e “Alien-O 8º Passageiro”, ambos de 1979.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[“Alien-O 8º Passageiro”, 1979]

Harry Dean Stanton disse numa entrevista que, como actor, tinha “florescido tardiamente”, quando já estava na casa dos 50. Esse florescimento deu-se em definitivo na década de 80. Além daquele que o actor considerava ser o seu melhor papel de sempre, corolário de tudo o que tinha feito antes e um dos seus raros como protagonista, o Travis Hendersen de “Paris, Texas”, de Wim Wenders (1984), onde parece brotar da própria paisagem desértica, não abre a boca nos primeiros 20 minutos e tira o máximo de expressão dramática da sua devastação física, dos silêncios e da quietude (David Lynch observava que as interpretações de Stanton estavam sempre “nas entrelinhas”), coleccionou uma série de participações memoráveis. Até em géneros em que à partida parecia não encaixar, como a comédia, a comédia romântica e o musical.

[“Paris, Texas”, 1984]

Foi assim em “A Morte em Directo”, de Bertrand Tavernier (1980), “Nova Iorque 1997”, de John Carpenter (1981), “Do Fundo do Coração”, de Francis Ford Coppola (1981), “Jovens Médicos Apaixonados”, de Garry Marshall (1982), “Christine: O Carro Assassino”, de novo de Carpenter (1983), “Amanhecer Violento”, de John Milius (1984), “O Clandestino”, de Alex Cox (1984), a fazer de anjo em “Natal Mágico”, de Phillip Borsos (1985), “Ligações Quentes”, de Robert Altman (1985), como o pai carinhoso e compreensivo de Molly Ringwald em “A Rapariga do Vestido-Cor-de-Rosa”, de Howard Deutch (1986), São Paulo em “A Última Tentação de Cristo”, de Martin Scorsese (1988). E a abrir os anos 90, “Um Coração Selvagem”, de David Lynch, num “detective tão bom, que conseguia encontrar uma pessoa honesta em Washington”.

[“Nova Iorque 1997”, 1981]

Harry Dean Stanton nunca mais voltaria a ter tantos e tão bons papéis, mas ainda podemos destacar “Twin Peaks: Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer”, de David Lynch (1992), “Os Poderosos”, de Peter Chelsom (1998), o Lyle de “Uma História Simples”, de David Lynch (1999), “À Espera de um Milagre”, de Frank Darabont (1999), ou “Inland Empire”, mais uma vez de Lynch (2006). Por esta altura era já um ator de culto, um símbolo cinéfilo e uma instituição americana, e como ele mesmo dizia, “fazia de mim mesmo – aliás, foi isso que fiz quase sempre”. O seu último filme, “Lucky”, de John Carrol Lynch, exibido no Festival de Locarno, é inspirado na própria vida do actor e conta com o seu grande amigo David Lynch entre os intérpretes.

[“Lucky”, 2017]

Harry Dean Stanton sempre gostou de música. Tinha uma banda onde cantava e tocava guitarra, The Harry Dean Stanton Band, que num primeiro tempo se chamou Harry Dean Stanton and the Repo Man, e tocava uma mistura de jazz, “country” e música mexicana. Era budista e quando alguém na rua ou num lugar público dizia que o conhecia de algum lado, costumava responder: “Sou um astronauta reformado”. No Kentucky, onde nasceu, faz-se há vários anos um festival de cinema com o seu nome. Numa entrevista ao “The Guardian” em 2013, disse: “Envelhecemos e no final, acabamos por aceitar tudo na vida – sofrimento, horror, amor, amor, perda, ódio – tudo. É tudo um filme, de qualquer modo.” E que longo e singular, atarefado e fascinante filme foi a vida de Harry Dean Stanton.