Primeiro tentaram negociar com a então ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz (PSD), depois com a atual, Francisca Van Dunem (PS), mas o resultado foi o mesmo: nenhum governante quis tocar na questão que, para a Associação Sindical de Juízes Portugueses (ASJP), é fulcral: a progressão na carreira e a respetiva remuneração. Sem acordo, os magistrados partiram para a decisão limite, uma greve para os dias 3 e 4 de outubro. Esta terça-feira, depois de uma reunião com o grupo parlamentar do PS, os juízes voltaram a alimentar a esperança de que as suas reivindicações possam passar do papel à prática e cancelaram a greve. Mas, afinal, o que querem os magistrados?

“Dizer que estamos só a discutir a questão remuneratória é uma falácia”, sublinha a presidente da ASJP, Manuela Paupério, ao Observador, momentos antes de reunir com os socialistas Filipe Neto Brandão e Fernando Anastácio e de decidir cancelar a greve. Depois das imposições da troika no setor da Justiça, que culminaram na entrada em vigor do novo mapa judiciário, em 2014, e com a alteração de leis como a do procedimento administrativo, imperava rever os estatutos dos magistrados.

Greve dos juízes foi desconvocada

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A ASJP foi chamada a dar a sua opinião ainda por Paula Teixeira Cruz, a ministra que pôs em prática o novo mapa judiciário. Mas depressa sindicalistas e ministra ficaram de costas voltadas. “A ministra disse uma mentira. Disse que os juízes tinham feito uma proposta salarial de x e era falso. Não tinha nada a ver com a nossa proposta, rigorosamente nada. Disse que tínhamos pedido o céu, colaram-nos uma etiqueta a chamar-nos de despesistas, ambiciosos, desconsiderando a situação do país”, acusa o secretário-geral da ASJP João Paulo Raposo.

Novo governo, novas negociações. “Quando a proposta nos é dada a conhecer, percebemos que no projeto que a senhora ministra [Francisca Van Dunem] nos entregou foi expurgado todo o capítulo que dizia respeito à remuneração e à própria reestruturação e desenho da carreira. Ainda assim, fomos para a mesa das negociações e conseguimos alguns acordos”, explica ao Observador Manuela Paupério. A ASJP insistiu no tema.

“Não se faz uma reforma estrutural da justiça de um país, alteram-se códigos e leis orgânicas e, quando se pega no estatuto de quem esta à frente dessa reforma estrutural, não se pega nesse ponto. Se não dava jeito, não se tinha reformado tudo estruturalmente”, critica João Paulo Raposo.

Segundo a ASJP, com a reforma do mapa judiciário e a especialização e centralização dos serviços judiciários, há juízes que chegam ao topo de carreira ao fim de dez anos de serviço. Ou seja, há juízes que aos 30 anos chegam ao topo da remuneração e assim se vão manter durante 40 anos de serviço. Mais. Com subsídios de funções e despesas de representação, há juízes na primeira instância a receber mais do que nos tribunais superiores. E as funções nos tribunais superiores, como é o caso da Relação, “são cada vez menos apelativas”. “É preciso rever tudo isto”, diz.

Atualmente, o salário dos magistrados começa no índice salarial 100 para o juiz estagiário, o que significa cerca de de 2500 euros, e o topo da carreira fixa-se no índice 220 (cerca de 5500 euros brutos) para os juízes da primeira instância. No entanto, a lei define que este valor não pode passar o salário pago ao primeiro-ministro, que ronda os 4892 euros, pelo que um juiz acaba por não receber de acordo com os índices salariais da função pública. “Tem-se discutido muito isto, até porque todo o setor empresarial do Estado está fora deste teto salarial, que comprime os topos das carreiras”, explica o secretário geral da ASJP, João Paul Raposo.

Já para os juízes dos tribunais superiores, o topo da carreira fixa-se no índice 260, o valor pago ao presidente do Supremo Tribunal de Justiça (cerca de 6500 euros). Mas como o limite do salário destes juízes é o ordenado pago ao Presidente da República (6523 euros), “o juiz não leva este valor para casa”, explica o responsável.

Aos salários base dos magistrados acresce o subsídio de compensação, antes denominado de residência, de 775 euros (apenas oito juízes não o recebem porque ocupam uma casa do Estado). Como o Governo não se mostrou disponível para ajustar salários, justificando-se com as restrições económicas e a devolução dos cortes salariais impostos pela troika , a ASJP desenhou uma proposta a partir deste subsídio transformando-o num subsídio de funções com escalões. A ideia é que seja ajustado de acordo com as funções do magistrado: na primeira instância passaria a ser de 800 euros, nos tribunais da Relação passaria a ser 1200 euros e para os juízes desembargadores e conselheiros passaria a ser de 1600 euros.

“Significa 5 ou 6 milhões de impacto orçamental. E mesmo assim disseram-nos que era impossível”, diz o secretário geral da ASJP.

Para a ASJP a profissão tem que ser “atrativa” e concorrer com a “justiça privada”. “Se perguntar aos dez melhores alunos de Direito o que querem seguir, nenhum quer ser juiz”, garante o secretário-geral da ASJP. Para já, a greve de 24 horas prevista para a primeira instância no dia 3 e para os tribunais superiores no dia 4 de outubro está suspensa, depois de PS, e também PSD e CDS, se terem mostrados abertos à discussão . Esta seria a quarta greve na história da associação sindical.

Manuela Paupério reitera: “Isto não é apenas a questão remuneratória tão só. É evidente que temos que nos preocupar com questões de celeridade e respostas mais rápidas, mas queremos que a carreira dos juízes seja uma componente importante, motivadora, que atraia pessoas de qualidade…”.

Caso o projeto de lei não seja discutido até ao final do ano, a ASJP pondera novo anúncio de greve.