Primeiro quis ser maestro, depois diplomata e a seguir “o maior filósofo de todos os tempos”, mas acabou por estudar Direito, primeiro no Recife e depois em Harvard, quando os militares lhe pediram “gentilmente” que saísse do Brasil. Acabou o curso com média de 20 (as notas mais baixas que teve durante a licenciatura foram um 18 e um 19), mas foi no escritório do pai, no Recife, que José Paulo Cavalcanti aprendeu tudo o que sabe sobre advocacia. No início, não passava de “um analfabeto”. Até que houve um dia em que o pai lhe “devolveu um texto 12 vezes”. “Era uma inicial de uma ação. E aí eu disse: ‘Foi a última vez que você me mandou reescrever um texto na sua vida. Você nunca mais vai me mandar reescrever um texto.” José Paulo Cavalcanti começou a trabalhar “como se não tivesse quem revisse” o que escrevia e a “aprender Direito de verdade”.

De todas as memórias que guarda do pai, há uma que recorda com maior carinho — quando, durante um discurso, o ouviu dizer que o homem é “barro trágico rareado por estrelas”. “Queria referir-se ao facto de a maioria dos homens ser barro e a outra estrelas. A maioria é Sancho, a outra é Quixote”, explicou em conversa com o Observador, sentado num banco de jardim do Largo de S. Carlos, em Lisboa, onde há 129 anos nasceu Fernando Pessoa, o seu escritor favorito. “Depois percebi que essa frase também pode ser lida num outro sentido — no sentido em que cada um de nós é barro quase todo o tempo e tem momentos de estrela pela vida. Não são muitos — somos Sancho quase todo o tempo e Quixote uma vez ou outra. E porquê digo isso? Porque, na minha vida como advogado, sempre me fascinou a natureza humana que explode na frente da gente, com surpresas repetidas. Muito mais do que resolver problemas, muito mais do que ganhar dinheiro.”

Foi por essa razão que sempre pensou em escrever um livro que reunisse algumas das histórias “inacreditáveis” que lhe passaram pelas mãos durante estes anos como advogado. “Percebi que tinha histórias que iam morrer comigo e não achei justo.” Decidiu meter mãos à obra. Depois de centenas e centenas de revisões, entregou o livro para publicação: Somente a Verdade, que chega agora a Portugal pela Porto Editora, reúne mais de 20 histórias reais sobre os Sanchos e os Quixotes que somos. Foram quase todas escritas na terceira pessoa, à exceção de uma — “A primeira morte de Hermilo”, sobre a despedida de dois grandes amigos, José Paulo e o romancista Hermilo Borba Filho.

Somente a Verdade chegou às livrarias no início deste mês de setembro. Custa 16,60 euros

“Escrevi na terceira pessoa e não funcionou. Aí, tentei escrever na primeira e ficou perfeito”, explicou José Paulo Cavalcanti. “Tinha um amigo que era o Jorge Amado. Um dia, estava com uma amiga chamada Doris Loureiro e ele chegou lá e disse: ‘Doris, eu vim aqui pedir desculpa. Prometi que Doris seria a heroína do meu próximo romance [Tereza Batista Cansada de Guerra], que eu acabei de fazer. Mas a Doris, que era para ser heroína, acabou dona de um bordel. Mas Doris, eu te dei todas as chances para tu te recuperares, tu é que não quiseste’! Hoje sei exatamente o que é isso. A personagem leva-nos para um lugar e não tem o que fazer, tem de se obedecer.”

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Cada conto foi revisto pelo menos 100 vezes, depois de José Paulo ler cada linha em voz alta. “No livro de Pessoa [Fernando Pessoa, uma quase autobiografia, editado em 2012 também pela Porto Editora], passei quase um ano lendo as frases em voz alta a ver se eu gostava do som. Quando não estava boa, rescrevia”, contou ao Observador. “Houve uma noite que passei reescrevendo duas frases. Essa coisa do som para mim é fundamental.” Além disso, a linguagem tem de ser “fluída” e ter “a cadência própria de quem está falando”. O processo leva tempo, mas José Paulo Cavalcanti não se importa: “Eu não sou escritor, sou um advogado que sabe escrever”, diz.

Selecionar as histórias já foi mais fácil. Apesar de ter escrito cerca de 40, metade delas não funcionavam no papel. A versão final tem 21, sobre casos tão distintos como a louca de Olinda ou a mãe que só conseguiu morrer depois de enterrar o corpo do filho morto. Só que, por causa disso, houve algumas igualmente boas que acabaram por ficar de fora. Foi isso que aconteceu com a história do locutor de rádio “mais famoso de minha terra”.

A história do locutor de rádio que se apaixonou pela professora

Quando tinha oito anos, o locutor de rádio mais famoso do Recife apaixonou-se por uma professora de português, 15 anos mais velha. “No dia do seu aniversário, bateu na porta dela e disse: ‘Estou perdidamente apaixonado pela senhora e quero casar’. A professora, com 23 anos, disse ‘cresça e apareça’ e fechou a porta” de casa. Apesar do “não, o rapaz não estava pronto para desistir e decidiu esperar. Esperou dez anos e quando a professora (ainda solteira) tinha 33 anos decidiu voltar a tentar a sua sorte. “No dia do seu aniversário [dos 18 anos], botou a melhor roupa e bateu na porta. ‘Estive aqui há dez anos, disse que estava perdidamente apaixonado pela senhora, disse que queria casar e eu vim aqui para casar com a senhora.’ Ele já era um homem feito e a mulher não bateu a porta. Começaram a conversar.”

Casaram. A família da noiva, contrária à união, faltou ao casamento. “O sogro nunca lhe dirigiu uma palavra. Eles tiveram duas filhas, mas chegou a um ponto que o pai [dela] lhe disse: ‘Você vai ter de escolher — ele ou a sua família’. Aquela escolha não existia naquele tempo, naquele lugar. Era a família. Separaram-se.” Um mês depois da separação, a professora foi diagnosticada com cancro. O locutor de rádio soube “por terceiros” da doença da ex-mulher, que definhava no hospital. “Uma noite em casa, bateram na porta. Quando abriu, era o sogro dele, com quem não tinha trocado uma palavra.” Perguntou-lhe o que queria, e ele pediu-lhe que deixasse a filha morrer. “O que é que eu tenho de fazer?”, perguntou-lhe o locutor. “Me acompanhe.”

“Foram ao hospital. Não tinha médico, nem enfermeira nem nada. Ela era um esqueleto com pele em cima. Pele e osso. Ele pegou na mão dela, fez uma pressãozinha e ela abriu o olho. Vou que era ele, apertou a mão dele com toda a força, sorriu e morreu. E morreu.” Durante os minutos, o locutor de rádio deixou-se ficar assim — com a mão agarrada à da mulher, morta. Quando quis largá-la, tiveram de chamar o enfermeiro — a força que a professora tinha feito era tanta que não havia quem conseguisse separar o marido da mulher. No final, o pai da professora limitou-se a abrir a porta para o locutor sair enquanto dizia “muito obrigada”.

José Paulo Cavalcanti publicou em 2012 Fernando Pessoa, uma quase autobiografia, uma biografia do poeta português

A maldição de Garanhuns e o iogurte de José

Além das 21 histórias originais, José Paulo Cavalcanti decidiu acrescentar mais uma à edição portuguesa — “O caso dos 3 canibais”, sobre Jorge Beltrão Negromonte da Silveira, um professor de educação física de Pernambuco que matou e cozinhou três vítimas com a ajuda da mulher e da amante. O caso ficou famoso no Brasil depois de, em 2012, a polícia ter descoberto que os suspeitos cortavam as vítimas aos bocados, guardavam a carne no congelador e depois usavam-na para fazer coxinhas e empadas que vendiam a cafés e restaurantes da zona.

O conto foi originalmente escrito para um livro sobre “grandes crimes” brasileiros editado pela Folha de São Paulo. O jornal “chamou os maiores advogados do Brasil para cada um escrever uma história”. “O dono do jornal, que é meu amigo, disse: ‘Não esquece José Paulo’. Pedi autorização, eles deram, e eu inclui mais um conto”, contou o advogado. “É esse o 22.º conto, que eu acho que ficou muito bem.” Apesar de não ter participado na história como advogado, José Paulo Cavalcanti estudou o processo e conversou com os criminosos. Decidiu envolver-se no caso depois de descobrir que tudo tinha acontecido no seu estado-natal, Pernambuco, onde diz existir uma “maldição” porque “os três grandes crimes” aconteceram na mesma cidade.

O primeiro aconteceu em 1917, há exatamente 100 anos. “Assassinaram Júlio Brasileiro, que tinha sido eleito perfeito de Garanhuns, no Recife. Avisaram a viúva, Ana Duperron, mas ela não quis saber quem é que o matou, porque na cabeça dela tinham sido os inimigos políticos que ele tinha na cidade.” Certa de quem era os responsáveis pela morte do marido, Ana contratou 100 “capangas” para destruírem as casas e empresas dos assassinos e anunciou: “Não derramarei nenhuma lágrima, se as outras não derramarem. E só vestirei luto depois de as outras vestirem”. Assustados, os inimigos de Júlio Brasileiro decidiram ir pedir ajuda ao juiz da cidade. Só que o juiz estava do lado da viúva e convenceu-os a fecharem-se na cadeia de Garanhuns porque lá estariam protegidos. “E lá ficaram, 18 adultos e uma criança de oito anos.” Desarmados e fechados atrás das grades, não tiveram como se defender quando os “capangas” invadiram a prisão. “Mataram os 18, menos a criança. Nesse dia, Ana fez o velório, vestiu-se de preto e chorou.” O caso ficou para a história como “A Hecatombe de Garanhuns”, mas não foi a primeira nem a última. Em 1967, 50 anos depois, um novo incidente chocou a localidade.

Hosana de Siqueira e Silva era um padre pouco convencional. “Tinha sempre na sua cama uma ‘devota’”, que o bispo fazia questão de afastar. Farto que D. Francisco Expedito Lopes mandasse embora as suas “protegidas”, o padre decidiu fazer uma visita ao Colégio Santa Sofia, onde morava, e pedir-lhe satisfações. Só que “mudou de ideias na hora e, quando o bispo abriu a porta, deu três tiros na barriga dele”, contou José Paulo Cavalcanti. O bispo, que era um santo, não morreu logo. Quando Monsenhor Callou se preparava para lhe dar a extrema-unção, D. Francisco Expedito Lopes fez-lhe um pedido: “Perdoe o padre, que ele não sabe o que fez”.

Hosana de Siqueira e Silva foi detido pouco tempo depois. Depois de cumprir pena pela morte do bispo, decidiu construir uma capela numa pequena propriedade em Garanhuns. Avisou a população que, daí para a frente, rezaria todos os dias uma missa. “E rezou, durante 20 anos, sem ter um único fiel. Até que um dia, chegaram lá e mataram o padre com uma cacetada na cabeça. O padre tinha 87 anos e a polícia nunca se interessou em saber quem é que o tinha matado.” Anos depois, deu-se o caso que é provavelmente o mais famoso dos três (ou, pelo menos, aquele que está mais fresco na cabeça dos brasileiros).

Jorge Beltrão Negromonte da Silveira, filho de portugueses da zona de Fátima, casou em 1984 com Isabel Cristina, um ano mais nova. Tudo correu bem até que, quando fez 40 anos, Jorge apaixonou-se por uma jovem de 16 anos, Bruna, que tinha conhecido no Clube Atlântico, onde dava aulas. “A Isabel já era uma velha e ele era um jovem. Era professor de educação física, não tinha uma grama de gordura, era cinturão negro de Karaté, violentíssimo.” Quando percebeu que estava prestes a perder o marido, Isabel decidiu propor a Jorge que levasse Bruna lá para casa. Passaram a viver os três. “A jovem não se incomodou porque sabia que a outra não era pare para ela, e Isabel preferia ver o marido a ser traidor pela frente do que pelas costas. Jorge achou uma maravilha e passou a viver com os dois amores da vida dele — a mulher que virou mãe e a amante. Ele dizia: ‘Não gosto mais dela como mulher, gosto dela como mãe.”

O advogado brasileiro esteve em Lisboa para apresentar o novo livro de contos (verídicos), Somente a Verdade, e no Porto para participar no encerramento da Feira do Livro

A relação, já por si só estranha, tornou-se ainda mais bizarra quando os três criaram uma espécie de seita que tinha por base os quatro elementos — terra, ar, fogo e água. Jorge, o mentor do grupo, acreditava que tinha de matar esses quatro elementos para se purificar e depois ascender aos céus. Foi assim que, juntos, mataram a primeira vítima. E depois outra e mais outra, até que foram apanhados pela polícia.

Quando o caso chegou aos jornais, José Paulo achou “engraçado” e quis conhecer Jorge. “Liguei para o secretário e disse que queria vê-lo na prisão. Ele disse: ‘O senhor vai, mas vai com uma escolta militar’. Eu não sou homem de andar com escolta não, e aí o homem disse: ‘Eu não estou preocupado com o senhor, estou preocupado comigo! Se acontecer alguma coisa com o senhor, quem vai ter de explicar aos jornais sou eu’.” Mas o advogado teimou e, apesar dos avisos do psicólogo de Jorge, que era seu cliente, quando visitou a prisão onde o homem estava detido, pediu à escolta que ficasse do lado de fora. Mas, assim que o fez, começou a arrepender-se “porque é a melhor prisão do estado”.

Com 440 vagas e 1.770 reclusos, o Complexo do Curado, na zona oeste do Recife, nem sequer tem camas que cheguem para todos os presos. “Dorme tudo debaixo da mangueira, no terraço, em qualquer lado. Quando olhei para aquele mar de gente, pensei: ‘Vai ser difícil entrar sozinho’. Mas o diretor me salvou. Em vez de me levar ao Jorge, mandou o Jorge até mim”, contou o advogado. “Ele estava algemado e pedi para lhe tirarem as algemas. Não converso com homem algemado, tem de ser de igual para igual. Nos levaram para uma sala de três metros por três, com uma mesinha, três cadeiras e nove guardas. Pedi para tirarem os guardas porque não ia conversar com ninguém cheio de guardas. E aí, o diretor da prisão disse se eu queria a porta aberta ou fechada. E eu doido para dizer ‘deixa a porta aberta’, mas não ia dar uma de fraco. Disse: ‘Como o senhor preferir’.” Felizmente, o diretor preferia a porta aberta.

José Paulo e Jorge estiveram quatro horas à conversa. A primeira de muitas. Durante esse tempo todo, o canibal, como tinha começado a ser conhecido na prisão, não mostrou nenhuma emoção. “Fiquei do lado dele esperando que ele se mexesse. O primeiro murro quem dava era eu!” Mas não foi preciso. No final, José Paulo Cavalcanti voltou a repetir a mesma pergunta que tinha feito no início — se estava tudo bem e se precisava de alguma coisa:

— O senhor quer alguma coisa? Posso-lhe ajudar?
— Pode. Eu sou ovolactovegetariano. Só como ovo, leite e vegetais, e aqui só servem arroz, feijão e carne. Carne eu não posso comer, então só estou comendo arroz e feijão. E eu estou com tantas saudades… Se o senhor puder…
— O que é que você quer?
— Iogurte.

Quase sem conseguir acreditar, José Paulo Cavalcanti deu algum dinheiro a Jorge e disse-lhe que pedisse aos guardas que lhe comprassem iogurtes. Antes de sair do Complexo do Curado, o ex-professor de educação física fez-lhe ainda um outro pedido: se lhe podia dar o livro que trazia consigo, que tinha acabado de publicar, e se o podia assinar. É que Jorge gostava muito de ler, mas não tinha nenhum livro na prisão. “Como é que se dedica um livro a um assassino?” José Paulo nunca tinha pensado nisso, mas teve de desenrascar qualquer coisa. Na primeira folha em branco, escreveu apenas: “Para Jorge, com um abraço. José Paulo Cavalcanti”.