Ninguém sabe bem de onde veio este rapaz a quem colaram um pedaço de fita cola preta na boca, que tem os olhos grandes e negros e o cabelo arrepiado como se tivesse acabado de sair de um pesadelo. Há quem diga que veio de um filme de Tim Burton, da imaginação gótica de Edgar Allan Poe, da melancolia clownesca de Charlie Chaplin ou do vaudeville de Buster Keaton. Ele não diz nada.

Não está ali para dar respostas a jornalistas nem a pessoas intrometidas. Ele está ali para nos dar conta de que existe um mundo onde a stand up comedy não tem que ser sinónimo de anedotas ordinárias, trocadilhos básicos, alusões sexuais, humilhação gratuita de algum incauto, mas que pode ser uma festa da inteligência feita apenas com os olhos, as mãos e as pernas. O rapaz é Sam Willis, aka Tape Face, o improvável finalista do America’s Got Talent 2016 que, depois de conquistar o Fringe, o West End londrino e Las Vegas, chega a Lisboa para dois espetáculos no Tivoli, em Lisboa, já na 2ª e 3ª feira.

Apesar do glamour, dos muitos holofotes e cenários de sofisticados programas de televisão e das salas de teatro onde atua, este este rapaz de boca tapada promete desapontar quem espera ver o próximo american playboy. É que não há nele nada de estrela pop, de boy band. De certa forma, Tape Face é a antítese da cultura do nosso tempo: muitos gritos, muito barulho, muito gloss, muito marketing.

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Sempre vestido com uns velhos jeans que já terão sido pretos há muito tempo, umas sapatilhas All Star, um casaco demasiado largo para o seu corpo magro e uma mala de vendedor de jornais do século XIX, ele é uma figura automaticamente deslocada, estranha, meio vagabundo, meio punk-gótico, mais próximo dos vencidos que dos vencedores, mais próximo dos marginais que dos burgueses.

Mas é a sua inviolável mudez, os lábios escondidos sob o plástico negro, que parece trazer à superfície um dos terrores do século XXI: o silêncio. Porém, é porque atravessa este medo que Tape Face nos leva para o seu mundo prodigioso, onde nos rimos como na infância; da pura surpresa, da magia do corpo que se transforma noutra coisa qualquer, nos gags feitos a partir do uso engenhoso de objetos banais, da comédia de enganos que se desenvolve apenas com olhos revirados e a agilidade e rapidez dos dedos. Para arrancar exuberantes gestos de admiração ao júri do America’s Got Talent bastaram-lhe duas luvas de cozinha e um vestido vermelho.

Comédia, mimo, teatro-físico: das ruas de Londres ao Royal Albert Hall

O ator e comediante português contou ao Observador que conheceu Sam Willis há 10 anos quando ambos atuavam nas ruas de Edimburgo durante o festival Fringe: “Foi por essa altura que ele começou a desenvolver este número clownesco que hoje se tornou o espetáculo Tape Face. Hoje em dia ele esgota uma sala durante os 28 dias que decorre o festival, mas aquilo não nasceu do nada, estão ali anos e anos de trabalho árduo”.

Sam Willis, neozelandês, 39 anos, começou a fazer números de palhaço aos 13 anos e acabou por se formar na escola de circo de Christchurch. Muito influenciado pelos freak-shows dos circos do século XIX, pela pulp comedy, fã de Buster Keaton, trabalhou na rua, na televisão, em casinos até se mudar para Londres em 2007. Recorda que a primeira vez que atuou na capital britânica ganhou 8 libras.

Foi no Fringe que a sua reputação cresceu e, em 2011, já estava a participar no BBC Comedy Prom, no Royal Albert Hall. O comediante e apresentador Guilherme Fonseca diz que vai ver o espetáculo de Willis desde que vai ao Fringe há 6 anos: “O Tape Face é absolutamente único, parece um rapaz perdido que ninguém sabe de onde veio nem para onde vai, onde o riso está ligado à melancolia, a uma extrema calma e doçura. É como voltar ao mundo da infância e no entanto é uma performance que nos obriga a refletir sobre o nosso tempo. Estamos viciados em barulho, perdemos a capacidade de gostar do silêncio, e sobre como falamos e na maior parte das vezes não chegamos aos outros como ele faz, sem dizer uma só palavra”.

Sam Willis aka Tape Face estará em Lisboa dias 25 e 26, no teatro Tivoli

Pedro Tochas acredita que “Portugal está a passar ao lado deste fenómeno” porque a palavra é mais fácil de vender. Fala-se em comédia silenciosa e as pessoas assustam-se”, diz o ator. “O Tape Face é uma experiência emocional única”, diz, e conta que ao contrário da personagem, Sam Willis não é nada envergonhado nem tímido: “Quem atua nas ruas não pode ser tímido, pelo contrário é alegre e falador. E depois do espetáculo vou levá-lo a comer polvo à lagareiro”, promete.

Os críticos comparam-no a Charlie Chaplin, Marcel Marceau ou Buster Keaton, mas se é certo que ele é um repositório de muitas personagens e tradições do circo ao cinema, a verdade é que o seu show integra também todo o colorido kitsch da cultura pop, cenas da Guerra das Estrelas com agrafadores e outras coisas improváveis que saem de dentro da sua mala sem fundo. Willis conta que tudo começou por acaso porque como é “um fala barato” e queria ensaiar um número silencioso lembrou-se de “colocar fita-cola na boca”. A assim nasceu aquele que será um dos mais notáveis palhaços do século XXI. É comum os fãs sentirem que o querem guardar no bolso, levar para casa e isso já lhe valeu ser chamado de “o comediante mais charmoso do mundo”. Mas ele diz que tudo o que quer “é daqui a 20 anos abrir uma pequena livraria, servir café e perder todo o dinheiro que ganhei”.

Desde 2011 que Willis soma prémios mas o fenómeno ganhou expressão mundial depois da sua passagem pelo concurso americano onde chegou à final, os seus vídeos no youtube têm milhares de visitas e multiplicam-se os “memes” com os olhos tresloucados do Tape Face a aparecerem em todas as fotografias de cenas clássicas do cinema e da política e está já prevista a criação de merchandising.

Tape Face como o poeta americano gótico Edgar Allan Poe, cuja imaginação bem podia ter inventado um rapaz assim

Tape Face está em cena no Teatro Tivoli, na avenida da Liberdade em Lisboa, nos dias 25 e 26, pelas 21.30. Os bilhetes custam entre 15 e 25 euros. Espetáculo para maiores de 16 anos.