A imagem do Presidente da República a banhos na ilha de Luanda ou a disputar uma partida de basquetebol na Escola Portuguesa de Luanda, tudo isto na véspera da tomada de posse de João Lourenço como Presidente de Angola, pode transmitir uma ideia de paz e serenidade. No entanto, o chefe de Estado português chegou à capital angolana sob uma chuva de críticas — tal como foi assobiado (e também aplaudido) na cerimónia oficial desta terça-feira —, onde é acusado de bajular o regime angolano e de não ser “sério”.

Em declarações à Lusa, o vice-presidente da UNITA, Raúl Danda, disse que “por uma questão de dignidade, a determinada altura é preciso que olhemos para os outros de igual para igual”. Porém, segundo o número dois do maior partido da oposição angolana, existe “uma relação de verdadeira dependência de Portugal em relação a Angola”.

Um dos exemplos encontrados por Raúl Danda foi o cancelamento da visita a Angola da ministra da Justiça de Portugal, Francisca Van-Dúnem, ela própria nascida em Luanda. A visita chegou a estar marcada para 22 a 24 de fevereiro deste ano. Porém, por ordem do seu homólogo angolano, a visita foi acabou por ser adiada. “Não existem condições par a realização dessa visita”, disse em janeiro deste ano o ministro da Justiça de Angola, Rui Mangueira. Mais tarde, já em fevereiro, e uma semana antes da data para a qual chegou a estar marcada a viagem de Francisca Van-Dúnem, o vice-Presidente de Angola, Manuel Vicente, foi acusado de corrupção pelo Ministério Público de Portugal no âmbito do caso Fizz.

“Se surge um órgão de comunicação social a falar de um membro do Governo [angolano], uma alta figura na hierarquia do MPLA, zangam-se, fazem uma birra que nem crianças, agora não queremos mais Portugal e Portugal verga”, disse Raúl Danda à Lusa. “Quando Angola diz que a ministra não vem, agora não queremos, Portugal verga. Quando gritam agora podem vir para vir à tomada de posse [do novo Presidente, João Lourenço], Portugal verga.”

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Marcelo assobiado em Angola durante a posse de João Lourenço

Marcelo Rebelo de Sousa foi o primeiro chefe de Estado do mundo a endereçar as suas felicitações a João Lourenço após as eleições gerais de 23 de agosto. A mensagem, onde se eram destacados os “laços fraternais que unem os dois países e os dois povos”, surgiu a 26 de agosto, quando ainda não eram conhecidos os resultados oficiais. Porém, ainda antes daquela divulgação, o MPLA reclamou a vitória, baseando-se em números que lhe chegavam. O processo de contagem dos votos foi alvo de polémica em Angola, com os delegados eleitorais em representação dos partidos da oposição a recusarem reconhecer os resultados provisórios.

Imprensa da oposição faz montagem com Marcelo e figuras de topo do regime

A visita de Marcelo Rebelo de Sousa também não escapa à (pouca) imprensa da oposição em Angola. O jornal Folha 8, num texto sem assinatura, escreve como o Presidente português se referiu ao momento da sua visita como “particularmente simbólico” e que ela demonstra o “sentimento forte de milhões de portugueses em relação a milhões de angolanos, sabendo que é recíproco”.

A estas declarações, o jornal Folha 8 reage desta maneira:

Estará o Presidente português a referir-se aos nossos 20 milhões de angolanos pobres? Estará a lembrar-se que o MPLA colocou o país nos primeiros lugares do ranking dos mais corruptos do mundo? Estará a cogitar no facto de Angola liderar o índice mundial de mortalidade infantil?

Mais à frente, o Folha 8 acusa o Presidente português de querer “assumir a liderança do ranking dos países mais bajuladores e mais servis, certo que estava que — provavelmente até muito antes das eleições — o MPLA comeria de cebolada a oposição”. “Assim, não sendo sério, nem sequer se preocupou em parecer sério”, concluiu.

Ilustração do artigo crítico para Marcelo Rebelo de Sousa no jornal Folha 8

O artigo é acompanhado por uma montagem onde Marcelo Rebelo de Sousa surge, em trajes tribais, a dançar à frente de José Eduardo dos Santos, João Lourenço e o procurador-geral da república de Angola, João Maria Moreira de Sousa.

Marcelo e os portugueses em Angola

As críticas partem também de Rafael Marques de Morais, jornalista e conhecido ativista angolano. Num texto publicado originalmente no site Maka Angola e também reproduzido no Observador, o autor do livro “Diamantes de Sangue: Corrupção e Tortura em Angola” escreveu de forma crítica sobre Marcelo Rebelo de Sousa. “Pensei que o presidente dos ‘afetos’ tivesse tato diplomático para lidar com Angola. Enganei-me. Mas não me engano quanto à hospitalidade, ao sentimento de amizade, à capacidade de perdoar e à tolerância do povo angolano”, escreveu. “Bem-vindo a Angola, camarada Marcelo.”

Marcelo desvalorizou polémica à chegada

O Presidente da República procurou desvalorizar as críticas que lhe foram feitas, referindo à imprensa, depois do seu mergulho e ainda de tronco nu, que “aquilo que nos une é muito mais do que aquilo que nos pode separar”.

“Angola pode contar com Portugal, com as empresas, os empresários, os trabalhadores portugueses. E Portugal também obviamente conta com os milhares de angolano que lá vivem, que lá trabalham que lá criam riqueza, a todos os níveis, na economia, na sociedade portuguesa”, disse.

“Estamos juntos, estamos juntos e isso ninguém nos tira”, concluiu então Marcelo Rebelo de Sousa, repetindo, talvez acidentalmente, o slogan celebrizado pelo MPLA, “estamos juntos”.

Noutra ocasião, depois de se ter encontrado com o Presidente cessante, José Eduardo dos Santos, os jornalistas perguntaram a Marcelo Rebelo de Sousa se o homem que governo Angola durante 38 anos pode ser considerado um “amigo” de Portugal. “Daquilo que ouvi do testemunho dos sucessivos presidentes que me antecederam, é possível encontrar vários momentos da história comum passos de convergência e de aproximação que no essencial respeitaram esta ideia, que é a ideia de dois povos que são irmãos”, disse.

Depois, reconheceu que nem sempre essa relação se fez de uma cooperação estreita. Porém, procurou desvalorizar esses momentos. “Como acontece com todas as famílias, há momentos em que há pontos não tão importantes de divergência e de dissonância”, disse.