Última atualização às 15h30.

O prémio Nobel da Medicina 2017 foi atribuído a três investigadores estadunidenses nascidos na década de 1940: Jeffrey C. Hall, da Universidade do Maine, Michael Rosbash, da Universidade Brandeis (Waltham) e Michael W. Young, da Universidade Rockefeller (Nova Iorque) pela descoberta dos mecanismos moleculares do ritmo circadiano, o relógio biológico que regula os organismos.

O prémio tem o valor de nove milhões de coroas suecas (cerca de 937 mil euros) que será distribuído pelos três laureados A seleção dos investigadores, entre as centenas de nomeados todos os anos, permanece absolutamente secreta até ao momento do anúncio dos vencedores – aliás, os nomeados de cada ano só podem ser conhecidos ao fim de 50 anos.

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Quem foi nomeado para o Nobel entre 1901 e 1966?

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Quer conhecer todos os nomeados entre 1901 e 1966? Veja aqui. Percorrendo o gráfico interactivo poderá descobrir que Albert Einstein, laureado em 1921, foi nomeado 62 vezes, ou que Arnold Sommerfeld nunca ganhou nenhum Nobel apesar de ter sido nomeado 84 vezes.

Physics Today

“Fiquei tão contente com o anúncio que comecei a ligar às pessoas do grupo que estão interessadas nesta área”, disse ao Observador Cláudia Cavadas, investigadora no Centro de Neurociências e Biologia Celular (CNC) da Universidade de Coimbra. “E eu nem sequer conheço os investigadores.” O motivo da alegria é que esta distinção é “muito importante para a área de investigação”, uma área em que a equipa de Cláudia Cavadas começa a dar os primeiros passos.

Andar ao ritmo do relógio biológico

Já alguma vez teve a oportunidade de ver trabalhar um relojoeiro? Esventrar um relógio de pulso exige uma manipulação minuciosa dos mecanismos que fazem os ponteiros seguir o seu ritmo. Pôr o relógio biológico a funcionar – o nosso e o dos restantes seres vivos – e sincronizá-lo com a rotação do nosso planeta exige a mesma minúcia e complexidade.

Para perceber como funciona o relógio biológico dos seres vivos, os investigadores usaram a mosca da fruta como organismo modelo e conseguiram isolar o gene que controla este ritmo diário – também chamado de ritmo circadiano. Este gene é responsável pela produção de uma proteína que se acumula nas células durante a noite e é degradada durante o dia. Depois deste, outros genes com influência direta e indireta no relógio foram sendo descobertos.

A proteína produzida durante a noite tem assim um ciclo de 24 horas que acompanha o ritmo circadiano: umas vezes a produção é estimulada, outras vezes é inibida. Um relógio que faz com que os mecanismos avancem ou recuem resulta no organismo, mas deixaria o relógio de pulso com os ponteiros trocados.

Ainda que tenha sido estudado nas moscas da fruta, este mecanismo existe em todas células e formas de vida: dos organismos unicelulares, como as bactérias, até aos organismos mais complexos como plantas e animais – incluindo o homem. Sabe-se também que os ritmos circadianos são mecanismos muito antigos e que se mantiveram mais ou menos inalterados durante a evolução.

O relógio biológico prepara o organismo para as várias fases do dia – Noberlprize.org

Enquanto o relógio de pulso bate os segundos a um ritmo certo e constante, o nosso relógio biológico é capaz de se adaptar aos vários momentos do dia, incluindo à presença ou ausência de luz. E se o relógio de pulso nos ajuda a prevenir os atrasos, o nosso relógio interno tem influência no nosso comportamento, ciclos de sono, metabolismo, temperatura corporal e produção de hormonas.

O sistema circadiano é um mecanismo auto-sustentado, com ciclos de 24 horas, condicionado por estímulos externos, como a luz, e que afetam processos fisiológicos (que regulam os organismos).

Apesar de a luz ser um dos principais estímulos do relógio biológico, o que os investigadores agora galardoados conseguiram demonstrar é que o relógio funciona mesmo quando os organismos são colocados às escuras.

Mas, tal como um relógio de sol que sem a luz do astro rei não cumpre a sua função, o nosso relógio interno também fica desregulado com alteramos os ciclos de dia e noite ditos normais, como quando viajamos para um país com um fuso horário completamente diferente daquele de onde partimos, quando trabalhamos por turnos ou quando fazemos uma direta.

Se a pilha gasta do relógio de pulso rebentar no interior do aparelho arriscamo-nos a ficar com um relógio avariado. Da mesma forma, a interferência no nosso ritmo circadiano, por exemplo com maus hábitos de sono, pode levar ao aparecimento ou agravamento de doenças, como distúrbios metabólicos, doenças neurodegenerativas ou cancro. Por outro lado, as doenças também podem afetar o ritmo circadiano.

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A investigação desenvolvida por Jeffrey C. Hall, Michael Rosbash, e Michael W. Young permitiram perceber os mecanismos básicos de controlo do relógio interno. As implicações desse controlo (e da falta dele) deram origem a uma área de investigação em expansão, não tivesse este mecanismo tanta influência na nossa saúde e bem-estar.

Onde nos leva o relógio biológico?

Um dos produtos desta investigação são os modelos de relógios moleculares cada vez mais complexos, com muito mais genes e proteínas envolvidos na regulação dos mecanismos – uns ligam, outros desligam. Por isso, será mais correto dizer que o relógio biológico de um animal, mais do que um relógio de pulso, é uma loja de relógios em que todos têm de estar sincronizados.

O relógio central desta rede complexa está localizado no hipotálamo – uma região do cérebro responsável por regular muitos processos fisiológicos. A luz é o principal estímulo externo deste relógio que controla os relógios periféricos, como os que estão localizados no fígado ou no estômago. Mas não é o único, como foi demonstrado pelos laureados.

“Sabe-se que o epitélio do estômago [tecido que reveste o interior do órgão] é renovado durante a noite”, disse ao Observador Cláudia Cavadas, investigadora no Centro de Neurociências e Biologia Celular. “O que acontece [aos relógios internos desse órgão] se comermos a essa hora?”.

A coordenadora do grupo de Neuroendocrinologia e Envelhecimento do CNC refere-se não só a quem come fora de horas por opção, mas sobretudo aos grupos profissionais que são obrigados a trabalhar por turnos, como os enfermeiros. A mudança constante de turnos – ora se trabalha durante o dia, ora se trabalha durante a noite – tem implicações no funcionamento do organismo, o relógio interno não tem tempo para se sincronizar com os novos horários.

Trabalhar por turnos aumenta o risco de morte prematura

O trabalho por turnos é um dos temas que preocupa a investigadora que espera que a investigação na área possa levar a alterações no Código de Trabalho. E as noitadas dos estudantes também não são menos relevantes. Sabe-se que as noites perdidas têm impacto na memória e na concentração, mas que outros efeitos poderá ter, nomeadamente no relógio interno?, pergunta.

O estilo de vida pode afetar o ritmo circadiano, mas as doenças também. Esta é uma área de investigação que a equipa de Cláudia Cavadas quer explorar: De que forma as patologias alteram os genes que regulam o relógio biológico? E durante o envelhecimento, será que os relógios biológicos também sofrem alterações?

Cláudia Cavadas tem neste momento mais perguntas que repostas, mas acredita que o trabalho de investigação que a equipa vai desenvolver poderá ter impacto na investigação aplicada e nos tratamentos médicos. Pode descobrir-se que determinados medicamentos são mais eficazes ou têm menos efeitos secundários quando tomados em momentos específicos do ritmo circadiano.

Ritmo circadiano de um parasita

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A equipa de Luísa Miranda Figueiredo, investigadora no Instituto de Medicina Molecular, tem dado passos nesse sentido. A ideia era perceber se o parasita Trypanosoma brucei, que provoca a doença do sono, afeta o ritmo circadiano do hospedeiro – o homem. Mas uma outra pergunta surgiu: Será que o parasita tem relógio biológico? A resposta é sim. O próximo passo é descobrir qual a vantagem para o tripanossoma e como é que é regulado.

Nature Microbiology

Lembrando que as alterações do ritmo biológico podem levar ao aparecimento de doenças faz pensar noutra linha de investigação e tratamento: a reposição do ritmo circadiano.

E quem sabe se conhecendo os ritmos circadianos dos agentes patogénicos (causadores de doenças) se podem descobrir novas formas de combater bactérias e parasitas. Por enquanto, não é mais do que especulação, mas a investigadora tem esperança que se torne realidade.

O seu relógio biológico anda fora de horas? Acerte-o se quer prevenir doenças

Quais eram as previsões para este ano?

O secretismo em torno da lista de nomeados e as escolhas inesperadas incentivam as tentativas de previsão, ainda que as apostas possam estar muito longe da realidade – como se verificou mais uma vez este ano. As apostas vão de preferências e palpites a métodos mais ou menos sistemáticos, como os da Clarivate Analytics.

Todos os anos, a Clarivate Analytics analisa os artigos científicos publicados à procura de potenciais candidatos aos prémios Nobel. Aqueles que atingem o topo das citações dentro da sua área de investigação têm mais probabilidade de serem laureados. Pelo menos, assim assume a empresa.

A lista de 2017 para a Medicina inclui Lewis C. Cantley, pela descoberta da função da enzima PI3K no crescimento dos tumores, Karl J. Friston, pela contribuição para a análise de imagens do cérebro (como ressonâncias magnéticas), e a dupla Yuan Chang e Patrick S. Moore pela descoberta do vírus herpes associado ao sarcoma de Kaposi.

Já o site StatNews fez uma aposta diferente e aponta as atenções para a imunooncologia e nomeia três investigadores sedeados nos Estados Unidos: Jim Allison, do MD Anderson Cancer Center, Gordon Freeman do Dana-Farber Cancer Institute e Arlene Sharpe da Harvard Medical School. O trabalho feito por estes investigadores levou a criação dos primeiros tratamentos de imunoterapia contra o cancro.

O novo caminho para combate ao cancro que faz aumentar esperança de vida

Há quem deposite esperanças na técnica CRISPR que tem permitido grandes avanços na investigação da edição genética de células, incluindo de células humanas.

O jornal espanhol El País, com outra abordagem, lembrou que desde 1901, quando se iniciou a atribuição do prémio Nobel, apenas 6% dos laureados em Medicina foram mulheres. Uma tendência que tem vindo a mudar nos últimos anos: dos 48 prémios atribuiu (11 entre 1981 e 2000 e 19 entre 2001 e 2016).