Título: Almada Negreiros. Um percurso possível | A possible route
Autora: Maria Antónia Maia
Editora: Imprensa Nacional
Páginas: 208 e um mapa


Depois de Eça de Queiroz, com trabalhos de A. Campos Matos (2000, 2015), e depois de Fernando Pessoa, com Marina Tavares Dias (1991, 1999), eis finalmente José de Almada Negreiros mapeado na cidade de Lisboa, num pequeno livro facilmente transportável num passeio urbano — uma publicação bilingue, apoiada pelo Turismo de Lisboa e em parceria com a Direcção-Geral do Património Cultural e a Câmara Municipal de Lisboa.

Escrevi finalmente porque era por de mais evidente que faltava um instrumento deste tipo para enquadrar — e sugerir aos menos conhecedores — o reconhecimento de trabalhos do grande artista em colaboração com arquitectos de nomeada, ou a nova arte pública que em anos mais recentes justamente lhe foi dedicada em homenagem. O design do atelier Barbara Says… é competente, muito agradável aos olhos, o objecto-livro de capa plastificada e cantos arredondados tem manuseamento apetecível, e tudo isto representa um franco progresso face aos seus equivalentes acima referidos.

O livro aparece na altura mais conveniente, após o enorme êxito da exposição na Fundação Gulbenkian, “Almada, uma maneira de ser moderno”, que trouxe novas abordagens e alguma descoberta da sua obra plástica dispersa, mas também, e sobretudo, aparece após os trabalhos de restauro e reabilitação de duas obras marcantes na cidade: os baixos-relevos murais nos três edifícios do campus universitário, onde muitas linhas de tinta colorida há muito se vinham desvanecendo; e os vitrais da igreja de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, templo que foi objecto de extensa intervenção.

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Intervenções essas que vieram permitir campanhas fotográficas capazes de mostrar os trabalhos do genial artista no seu pleno esplendor material de luz e cor. Além disso, o sempre intermitente e demorado processo de publicação dos livros de Almada Negreiros alcançou há meses uma nova fase, com livros de bolso, ainda mais económicos e portáteis, portanto, que convidam todos à descoberta deste “português sem mestre”, na expressão feliz de José-Augusto França.

Mas se a oportunidade da edição é certeira, mais certeiro ainda é o título do livro. Um percurso possível evoca imediatamente restrições de algum tipo, ora por desgaste, destruição ou trasladação (e são vários os casos), ora por limitação de acesso que feche portas ao desfrute de obras criadas justamente para espaços públicos e que agora estão encerradas a visitas. E aí é que a porca torce o rabo.

De facto, os soberbos frescos almadenses para as gares marítimas da Rocha de Conde de Óbidos e de Alcântara, edifícios tutelados pela Administração do Porto de Lisboa, só são visitáveis uma vez ou outra, muito de quando em quando e em condições excepcionais de quase privilégio, ainda que, na verdade, tais painéis constituam uma magnífica representação artística duma população local como não há outras em cidades portuárias à volta do globo, sem que — durante anos e anos, e sem fim à vista — à persistente cegueira e arbitrariedade da APL sejam superiormente contrapostos firmes argumentos de magnânimo interesse nacional…

Setenta anos depois, apesar de alguma degradação externa, que a olhos vistos se percebe, a qualidade do risco e da fábrica destes dois edifícios de Pardal Monteiro harmoniza-se perfeitamente com a riqueza estética dos enormes trípticos, como demonstram as fotografias de grande formato incluídas às pp. 68-69, 70-71, 78-79, 80-81.

E “percurso possível” também porque, após o fecho da sede nacional do Diário de Notícias na Avenida da Liberdade, algum zelo patrimonial será necessário para que se não percam os frescos murais de Almada Negreiros (que já bem precisados estavam de restauro e reabilitação cromática), ou não venham a ser escondidos pelo pó de algum depósito de museu, como o painel de azulejos Família da livraria Ática (1950, 300 x 140 cm), não referido neste roteiro, ou mesmo, entre outros, o vitral Eros e Psique (1954, 57,5 x 325 cm) que da biblioteca da Mansão Filosofal da Rua de Alconela transitou até aos aposentos mais privados da presidência do parlamento, onde não será fácil bater à porta do sr. Ferro Rodrigues para admirá-lo…

Evitando debater essa necessidade de salvaguarda patrimonial, o texto de Maria Antónia Maia, escorreito e claro, cumpre razoavelmente bem a função didáctico-introdutiva que lhe foi destinada, mas, datado de 2013, o que já por si causa estranheza, afasta-se — incompreensivelmente — do que poderia e haveria de ser um roteiro absolutamente actualizado com tudo o que de novo trouxeram as pesquisas de Mariana Pinto dos Santos e tantos outros. Por exemplo, quem escreveu “terá aceitado o convite para a realização de frescos para a Estação dos Correios, nos Restauradores” (p. 195) não viu certamente o respectivo estudo reproduzido no catálogo da recente exposição da Gulbenkian (p. 403), onde também se inclui — como dado novo, que a mais fresca investigação revelou — o desenho para uma pintura mural na Pastelaria Suíça, no Rossio, datado de c. 1922, entretanto também destruída (p. 30).

A própria bibliografia, sempre relevadora e com função indicativa insubestimável, é demasiado comprometida com um certo statuo quo ante coincidente com a época da primeira versão deste trabalho. Sobre vitrais faltam-lhe, entre outros, textos de António Sena da Silva (“A decoração do templo contemporâneo” (1953 — identificado em Sena da Silva, Gulbenkian, 2009) e de Cottinelli Telmo (“Igreja de Nossa Senhora de Fátima”, Novidades, 13 de Outubro de 1938, p. 3). Sobre a casa da Rua de Alcolena, falta-lhe o livro de Barbara Aniello publicado em 2010 — e remissivos para toda a polémica envolvente, que dificilmente pode ser esquecida…

Sobre geometria, indica o pioneiro mas há muito tempo esgotado livro de Lima de Freitas, enquanto lhe faltam as entrevistas de 1955 a António Valdemar, incluídas, com outros textos deste jornalista, no livro de Setembro de 2015 Almada: os Painéis, a Geometria e Tudo. Dada a importância de Pardal Monteiro no contexto da obra pública de Almada Negreiros e da sua colaboração com arquitectos, é notória a ausência de bibliografia sobre este arquitecto, também ela assaz valorizada há pouco tempo. E claro está, falta aqui sobretudo o catálogo Gulbenkian de 2016-17, que é hoje a maior referência sobre Almada.

O livro também perde por considerar o Almada artista, mas não o Almada escritor. É uma omissão e tanto, dada a inextrinçável “organicidade” modernista da personalidade estética dele, que torna esquisito que se aborde um sem se considerar o outro. Teria sido um benefício mapear igualmente — ainda que distinguindo-os em termos visuais — os cine-teatros e outras instituições onde ele fez as suas importantes conferências, as quintas onde se representaram as suas primeiras peças de teatro e bailado, os jornais, como o Diário de Lisboa, onde escreveu e tanto desenhou, os cafés, cabarés, lojas, fábricas e galerias de arte onde foram expostos trabalhos seus, e sem qualquer dúvida também o Museu Nacional de Arte Antiga onde estão os Painéis de São Vicente que como objecto de estudo tanto o fascinaram ao longo de toda a vida — e mais tradicionalmente, neste tipo de roteiros, as casas onde viveu ou trabalhou e, no caso, até o hospital onde morreu, de tão grande significado geracional (no mesmo quarto em que Fernando Pessoa se foi em 1935). Dados biográficos como os zelosamente compilados por Luís Manuel Gaspar seriam uma sólida base de referência, permitindo alargar exponencialmente a geografia urbana do artista-escritor, multiplicando os seus pontos de referência.

Almada não dispõe, como o autor de Saudação a Walt Whitman, de uma casa evocativa feita centro cultural — embora a merecesse —, mas em contrapartida tem desde Julho de 2013 à beira-rio Reminiscência de Almada Negreiros, a belíssima réplica de 9 metros de altura em aço corten dum seu auto-retrato de 1949 (concebida pelas suas netas arquitectas, Rita e Catarina Almada), como tem, desde 1993, ano do centenário do seu nascimento, uma homenagem do artista conceptual Leonel Moura num dos principais acessos da cidade, e desde 2009 a decoração azulejar da estação Saldanha do metropolitano de Lisboa, uma realização-testemunho-testamento do filho do artista, o arquitecto José Afonso de Almada Negreiros, que combina obra gráfica, estudos geométricos e aforismos, entre os quais os inesquecíveis “A alegria é a coisa mais séria do mundo” e “Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa — salvar a humanidade”.

No livro um mapa final desdobrável localiza também essas homenagens póstumas, que hoje dão presença evidente ao artista no contínuo fluir da cidade. Mas outras haveria que assinalar, como os extraordinários retratos de Almada por Júlio Pomar, passados a azulejo na estação de metropolitano de Alto dos Moinhos, em 1988.

Seja como for, louve-se a boa intenção do editor e crie-se a expectativa de que estes lapsos serão corrigidos em reedições e o modelo aplicável a outros portugueses de génio, seja em Lisboa, Porto e mais. De novo: um pequeno esforço, portugueses.