No domingo, dia 1, Isabel Guedes foi votar pela primeira vez numas eleições autárquicas. Ao final da noite, a jovem de 21 anos tinha razões para sorrir. O movimento independente em que tinha colocado a cruz acabava de vencer as eleições à Junta de Freguesia de Eja, concelho de Penafiel, com maioria absoluta. E a presidente era ela.

Muito poucos poderão dizer que o seu primeiro voto foi em si próprios. Isabel Guedes, estudante de mestrado em Neuropsicologia e Psicologia da Saúde, é um desses raros casos. Primeiro, seguiu o percurso do pai, António Guedes, na psicologia. Agora, segue-lhe as pisadas no mundo da política, ou não fosse ele o autarca de Eja há 12 anos — o máximo permitido por lei. Em ambos os casos, o pai queria outro futuro para a filha.

“E mesmo a minha mãe não queria que eu fosse avante”, conta Isabel ao Observador, no edifício da Junta de Freguesia que passará a liderar daqui a cerca de um mês, quando o pai lhe passar o testemunho. Há um ano, nas reuniões do Movimento Independente Mais Eja (MIME), pelo qual acaba de ser eleita, falava-se em dois nomes potenciais para a candidatura a Eja. Ambos decidiram, no fim de contas, não avançar. Perante o vazio, a jovem lançou a ideia à mesa de jantar, em casa. E se fosse ela a candidata?

Isabel Guedes vai suceder ao pai, António, que ocupou o cargo durante 12 anos. © Ricardo Castelo / Observador

“A ideia não foi muito bem aceite”, recorda a jovem. “Porque sei no que ela se vai meter”, justifica o pai, ao lado. “E ela também sabe o que é ser autarca numa freguesia destas tão pequena. Aqui toda a gente conhece a casa do presidente da Junta, muitas vezes é lá que, numa primeira fase, se resolve um problema. Não há sábados nem domingos, somos como um bombeiro”, diz António Guedes. “E sempre com o telefone ligado, caso aconteça alguma coisa”, concorda Isabel, já informada do que a aguarda num futuro muito próximo.

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A estudante ouviu a opinião dos pais, mas decidiu avançar na mesma. Em segredo. “É teimosa como o pai!”, diz António Guedes. Nas últimas eleições, em 2013, foi Isabel quem tratou do processo da candidatura independente do pai, ainda que com a sua supervisão. Foi ao computador, alterou a data de uma das fichas de candidatura do MIME 2013, “meteu o nome dela como candidata e a mim como mandatário”, relata ele. Sem os pais saberem, foi para a rua em busca de assinaturas. Uma semana depois, de volta à mesa de jantar, recuperou o tema. Os pais não tinham mudado de ideias, mas ela mostrou-lhes uma folha com cerca de 50 assinaturas. Perceberam que não havia volta a dar. “O bichinho está cá dentro”, remata Isabel.

O pai é que era o presidente da Junta

António Guedes, psicólogo criminal, foi eleito três vezes consecutivas com maioria absoluta. Candidatou-se pela primeira vez em 2001. Perdeu. Em 2005 e 2009 foi eleito pela coligação PSD/CDS (é militante social-democrata), mas, em 2013, viu a concelhia escolher Antonino Sousa, um ex-militante do CDS, para ser o candidato à Câmara de Penafiel. O processo de decisão não foi consensual, nomeadamente dentro do PSD, e António Guedes não só se demitiu da concelhia como anunciou que seria candidato independente a Eja. Fundou o MIME e voltou a vencer com maioria absoluta. Por causa da lei da limitação de mandatos, não pôde recandidatar-se este ano.

Mesmo que pudesse, não queria. Se quisesse, podia ter ido como número dois na lista, um truque já visto por outras bandas. Só que António Guedes não só defende a entrada de sangue novo nos cargos, como vê chegada a hora, aos 50 anos de idade, de dedicar o seu tempo a outras coisas. “Quero começar a fazer o que fui adiando ao longo dos anos. Tenho hobbies e tenho dois livros alinhavados que quero finalizar.”

Os pais não queriam que ela fosse presidente da Junta. Conhecem as dificuldades do cargo. © Ricardo Castelo / Observador

Em 2001, Isabel tinha cinco anos. Toda a vida se lembra de acompanhar o pai nas campanhas — que nas freguesias passam muito pela ida porta a porta — nas idas às urnas, nas tomadas de posse e nas inaugurações de obra feita. Já mais velha, começou a envolver-se nas assembleias de freguesia. “Em 2013 fui eu que fiz a música da campanha”, diz, satisfeita. Naquela altura, algumas pessoas já brincavam, dizendo a António Guedes que, da próxima, a candidata seria a filha.

Isabel Guedes até conseguiu uma lista de apoio maior que a do pai: 152 cidadãos, com idades entre os 18 e os 80 anos, contra as 86 pessoas de António. Foi um ano de trabalho, com o pai sempre do seu lado. Começou por colocar um papel em cada residência, a anunciar que seria candidata. Foram os apoios, as 130 assinaturas que teve de recolher para validar a candidatura, a preparação do programa, a criação do hino — desta vez não foi ela que cantou na gravação da canção.

O ano de trabalho deu frutos, mas com direito a um susto. No domingo de eleições, os cinco candidatos a Eja foram-se encontrando na Junta de Freguesia, onde fica a única urna de voto. Toda a gente se conhece, pelo que o dia é de convívio e não há problemas entre adversários. “A ideia de ganhar surgia na minha cabeça”, admite. “Mas como estamos em democracia qualquer coisa pode acontecer.”

Na campanha porta a porta, sentia as pessoas motivadas. Eja tem 1090 habitantes e 887 eleitores, a jovem sabia que tinha uma boa percentagem de apoiantes, mas no domingo vacilou. “Eu estive o dia todo ali no pátio da Junta e muitas das caras que apareciam eu não conhecia. Houve uma altura em que fiquei confusa e pensei: ‘Isto não vai correr bem.’” À noite, a boa notícia: o MIME tinha obtivo 342 votos, num total de 48,79%. “Quando me disseram que era maioria absoluta… Eu ainda nem estou em mim!

Após a noite de eleições, alguém vandalizou um cartaz da vencedora. Mas a mensagem é positiva: “Obrigado. + 4 anos” © Ricardo Castelo / Observador

O anterior autarca tinha muitas ideias, “algumas das quais ficaram por concretizar”

Na CESPU, onde Isabel está a tirar o mestrado, alguns colegas também estiveram envolvidos em candidaturas políticas, por isso não estranharam. Outros já a chamavam presidente. Um dos professores passou a chamá-la pelo apelido, Guedes, como acontece com tantos políticos. Esta segunda-feira, Isabel não foi às aulas. Mas daqui para a frente já não serão só os colegas a tratá-la por presidente.

Boa tarde, senhora presidente”, diz-lhe um homem, mal a vê aproximar-se. António Guedes nasceu ali, em Entre-os-Rios, na Rua de Santo António, em 1967. Filha de outra era, Isabel nasceu num hospital com todas as condições. De resto, cresceu e sempre viveu em Eja, pequena freguesia de seis quilómetros quadrados onde as principais atividades são a restauração e o turismo que chega do Douro. As casas em pedra destacam-se e algumas têm a porta aberta, sem medo de possíveis amigos do alheio. A paisagem é predominantemente verde. Da rua onde fica a Junta de Freguesia avista-se Viseu e o Marco de Canaveses. Descendo até ao rio, também se consegue ver Aveiro.

Isabel conhece toda a gente e toda a gente a conhece a ela. Enquanto guia o Observador por algumas das ruas, passa uma ambulância cujo condutor lhe acena. “Está tudo bem, Nélson?”, devolve-lhe a nova autarca. Até quando vai dentro do carro, a conduzir, um grupo de mulheres de meia idade agita, efusivamente, as mãos em jeito de cumprimento. “Fiquei muito contente. Até chorei quando soube”, diz-lhe uma idosa, Rosa, que passa à porta da Junta e faz questão de dar um beijo a Isabel.

A idade não foi um contra porque, acredita, as pessoas conhecem a forma como esta filha da terra se envolve nas questões. O facto de o pai ser presidente há 12 anos “ajudou”, admite, porque as pessoas conhecem o trabalho feito e as bases do movimento MIME. Sendo o mesmo movimento, Isabel fala do futuro guiada por uma ideia de continuidade. “Mas temos outras ideias. Eu quero fazer uma renovação porque acho que esta freguesia tem todo o potencial para que sejam postas em práticas medidas e estruturas.

O anterior autarca — o pai — tinha muitas ideias, “algumas das quais ficaram por concretizar”, admite a filha, embora explique que António herdou uma dívida do anterior autarca de mais de 100 mil euros. Conseguiu reduzi-la para os 20 mil euros, e a nova presidente quer continuar o caminho das boas contas. Por isso, não pode “andar aqui a fazer promessas que correm o risco de não poderem ser realizadas”.

As primeiras desilusões com a politiquice

Quando tomar posse, a primeira coisa que quer fazer é pôr a funcionar um consultório médico mensal, de cariz social e gratuito, na própria Junta de Freguesia. Uma das amigas de Isabel é médica e disponibilizou-se para dar consultas gratuitas. Ciente de que há um número elevado de idosos a viverem sozinhos, já que a freguesia não consegue reter os jovens, a psicóloga quer disponibilizar também consultas gratuitas de apoio psicológico para idosas como Rosa, que vive sozinha e pode sofrer com o isolamento.

As prioridades de Isabel são implementar consultas médicas gratuitas e dar apoio aos muitos idosos que vivem sozinhos em Eja. © Ricardo Castelo / Observador

Há pequenas coisas que a Junta consegue implementar sem apoio da Câmara de Penafiel. Para o resto, é necessário que as duas estruturas trabalhem em conjunto. Recuperar a atual escola, fechada por falta de crianças, para espaço de atividades para a população, é um dos pontos do programa de Isabel Guedes. Outro é criar condições para que os jovens licenciados, como Isabel, não sejam obrigados a sair da sua terra em busca de trabalho. “Tivemos um decréscimo de população brutal nos últimos anos. Já só temos uma mesa de voto, por exemplo.” Um problema que afeta todo o concelho e que é “uma lacuna da autarquia”, acrescenta António Guedes, que critica a falta de resultados do gabinete da Câmara de Penafiel dedicado à captação de investimento.

Há uma marina e um porto, mas falta pôr em prática o projeto de regeneração urbana na zona ribeirinha, e para isso é preciso o empenho da Câmara na busca de fundos europeus. Criar um centro de dia e de apoio domiciliário na Quinta de Abôl — como era vontade do fundador Sarmento e Castro — é uma das vontades expressas no folheto do MIME. A Câmara faz parte da direção da Fundação Santa Maria Madalena, detentora da Quinta. Antonino Sousa, o mesmo que motivou a demissão de António Guedes da concelhia e a posterior candidatura contra a coligação PSD/CDS, é o presidente reeleito. E isto podem não ser boas notícias para Eja.

“O presidente não olha para cá porque a cor dele é diferente. É uma chatice”, lamenta Joaquim Barros. O eleitor está sentado junto de mais cinco habitantes de Eja, a poucos metros do cais de Entre-os-Rios. Votaram todos em Isabel Guedes na esperança de que traga ideias novas. Pelo meio, lamentam a falta de saneamento na freguesia e as estradas por alcatroar. “Gostam de dizer que Entre-os-Rios é a sala de visitas de Penafiel. Na prática? Zero”, queixa-se Joaquim Barros. Ainda que acredite que a vitória do candidato da coligação PSD/CDS na freguesia pudesse levar a atenções especiais, votou na candidata independente. “Somos muito teimosos. Sobretudo quando a razão está do nosso lado.”

“E o cemitério? Prometeram alargar em 2012 e não cumpriram”, acrescenta Maria de Fátima. “Quando o presidente [da freguesia] era da coligação PSD/CDS, havia mais boa vontade da Câmara de Penafiel. Agora há uma guerra partidária que não tem razão de ser. Devia tratar todos por igual”, critica o eleitor. António Guedes concorda que nos mandatos de 2005 e 2009 houve mais recetividade por parte da Câmara de Penafiel, governada igualmente por PSD e CDS. A partir do momento em que se tornou independente, em 2013, as coisas ficaram mais difíceis.

Eja fica próxima do local onde caiu a ponte Hintze Ribeiro, em 2001. Do rio, querem tirar dividendos do turismo. Mas precisam da ajuda da Câmara de Penafiel, de outra cor política. © Ricardo Castelo / Observador

António Guedes já aconselhou a filha sobre algumas idiossincrasias da política. Isabel já presenciou algumas armadilhas durante a campanha autárquica e sente-se “preparada” para o que lhe apareça no caminho. “Foi um ano muito duro”, suspira a independente, sem querer dar atenção a tricas. Diz apenas que “neste momento não se identifica com o PSD” de que é militante.

Durante a campanha, houve adversários que acusaram os Guedes de serem como os monarcas e quererem manter a família no poder. “Não serei a sombra da minha filha. Eu sou republicano e completamente a favor da lei da limitação de mandatos. As pessoas aqui votaram e decidiram em consciência”, responde tranquilo o autarca em fim de funções. É tão a favor da limitação de mandatos que só tem pena que não se aplique também a outros cargos políticos, como os deputados, presidentes de distritais, concelhias “e por aí fora”.

Como presidente da Junta a meio tempo, Isabel Guedes vai receber cerca de 270€ mensais de compensação por encargos com a função. A pequena Junta de Freguesia nem viatura tem. “Temos mesmo de gostar disto”, conclui Isabel. “As pessoas quando falam dos políticos generalizam, falam em tachos. A mim só me saem frigideiras. Eu tanto não sou político de carreira que não queria que ela seguisse a carreira”, diz o pai, a rir-se. Defende uma “profunda” reflexão interna e renovação nos partidos políticos. Fala com o conhecimento de quem é militante do PSD, assim como a filha — não foram expulsos, mesmo tendo-se candidatado à Junta contra o partido.

A subvenção do Estado vai cobrir as despesas que o movimento independente teve com a campanha. Alguns apoiantes ofereceram a Isabel esta bandeira caseira. © Ricardo Castelo / Observador

Quanto ao MIME, a subvenção do Estado vai dar para cobrir as despesas que o movimento independente teve com a campanha eleitoral, como as típicas canetas e quatro cartazes grandes espalhados pela freguesia — num deles alguém escreveu “Obrigado + 4 anos” após a noite eleitoral da vitória.

“É dinâmica, inconformada, tem muito a dar a esta terra”, elogia o pai, que promete estar ao lado da filha “para ajudar naquilo que ela entender”, deixando sempre que seja ela a seguir o seu caminho, promete. De resto, só tem dois desejos. “Que seja ela própria, com coluna vertebral, e que seja feliz.”

Apesar da tenra idade, Isabel tem um discurso informado e ponderado. Quando lhe perguntamos qual a sua principal motivação ser, a partir de agora, a responsável por ouvir e tentar solucionar os problemas da sua terra, em vez de estar a planear a próxima viagem com as amigas da mesma idade, a resposta sai com naturalidade. “Quero levar para a frente uma terra que tem tanto potencial, mas que não está a ser aproveitado. Quando sair daqui, quero que digam que a Isabel fez isto, desenvolveu aquilo, dinamizou, deixou uma marca nesta freguesia. É isso que me motiva.