Há 30 anos que não visitava Portugal e nunca tinha dado aqui qualquer conferência. Esteve previsto como convidado do Festival Internacional de Cultura, promovido em setembro pela editora Leya em Cascais, mas não pôde vir. E nesta terça-feira, ao fim do dia, finalmente apareceu – para uma conferência na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), em Lisboa.

Casaco preto e camisa cinzenta, Jonathan Franzen falou informalmente, com humor e ironia. E também algum enfado, como quem já repetiu as mesmas ideias muitas vezes. Por vezes, entusiasmou o público, como quando apresentou uma breve “lição de filosofia existencialista”:

“Nunca vemos as pessoas como elas são, vemos o que projetamos nelas. O meu pai e a minha mãe foram, a meus olhos, todo o tipo de pessoas. As pessoas que conheço são o que são, sim, mas também o que está em mim. Todos temos capacidade de criar personagens, sejamos ou não escritores.”

Franzen falou por 50 minutos e no fim aceitou responder a perguntas do público – eram cerca de 100 pessoas, entre as quais os escritores Rui Zink e João Tordo. Disse que é uma pessoa irritável, que se distrai facilmente com o chilrear dos pássaros, que gosta de começar a escrever pela manhã, que prefere ser romancista a ter de fazer qualquer outra coisa na vida. E assumiu-se como “escritor público” com posições políticas muito claras. “Mas ninguém me presta atenção, não na América de hoje”, ironizou, logo tecendo comentários sobre o atual presidente norte-americano:

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“O que mais me preocupa em Trump é que ele tem os códigos para lançar a bomba nuclear. E não vai a lado nenhum com a agenda legislativa que escolheu. Indicou pessoas incapazes, incluindo para a Agência Americana do Ambiente. E por hoje não gostaria de dizer mais nada sobre ele.”

Numa breve introdução, Vasco Rato, presidente da FLAD, classificou Franzen como “um dos melhores e mais bem sucedidos autores americanos contemporâneos” e aproveitou o momento para anunciar uma nova iniciativa da fundação: um curso livre sobre literatura americana, a partir da segunda semana de janeiro, dirigido por Isabel Lucas, jornalista e crítica literária.

Foi também Isabel Lucas quem conduziu a conferência, como se de uma entrevista ao vivo se tratasse. A biografia de Jonathan Franzen publicada há dois anos, “The Comedy of Rage”, da autoria do académico americano Philip M. Weinstein, deu mote a uma pergunta: considera que parte da sua carreira literária foi uma comédia de raiva? Franzen, narrador profissional, alongou-se:

“Fui um jovem zangado e com raiva, nem sei bem porquê, já que tive uma vida privilegiada: bons pais e irmãos, boa saúde, sou branco, heterossexual, americano, tive uma instrução acima da média. Se passarmos muito tempo a pensar sobre as coisas, ficamos frustrados ao constatar que os outros não pensam nessas mesmas coisas. Um exemplo: quando estamos a conduzir, temos de usar o pisca, para que as outras pessoas saibam que queremos mudar de direção. Como bom liberal, se alguém não faz pisca, sou levado a pensar que a pessoa está num dia ‘não’, ou que teve um problema com o pai ou tem um filho doente. Mas, muitas vezes, é porque essa pessoa não está a pensar nos outros condutores e não tem consideração pelo outro. Foi por causa deste enorme tema que andei zangado durante grande parte da minha juventude. Há pouco tempo, tive aulas de condução online, fiz um curso de seis horas sobre como ser melhor condutor, porque tinha cometido um pequeno crime. Descobri que tenho fúria de condutor [“road rage”]. Ia jurar que não. Mas tenho. Há coisas que podemos fazer para controlar este sentimento, como partir mais cedo, para não sentirmos tanta raiva no trânsito. Mas, sim, acho que sou uma pessoa raivosa.”

Talvez tenha poupado esta característica durante a conferência em Lisboa, mesmo se pareceu um tanto irascível quando Isabel Lucas lhe pediu que falasse sobre os escritores que mais o influenciaram. “Odeio essa pergunta”, afirmou a brincar. Mas não respondeu.

Outra questão, sobre o que o motiva a escrever numa época em que a literatura parece ter deixado de interessar à maioria das pessoas, mereceu resposta pronta:

“Normalmente, quem diz que não vale a pena continuar escrever nos dias de hoje, está a dizer que ninguém o lê. Se fosse apenas leitor, agradeceria a mim mesmo por escrever o que escrevo.”

Nascido em 1959 no estado do Illinois, Franzen estreou-se com “The Twenty-Seventh City”, em 1988. Vive a maior parte do tempo em Manhattan, Nova Iorque, e costuma passar os verões em San José, na Califórnia. Quatro das suas obras estão traduzidas em Portugal: “Correções” (2001), “A Zona de Desconforto” (2006) , “Liberdade” (2010) e “Purity” (2015), esta última com o título original inglês.

Celebridade das letras, foi finalista do prémio Pulitzer de ficção e vencedor do National Book Award. Fez capa da revista “Time” há sete anos, aí apontado como o “grande romancista americano”, à maneira de Mark Twain, F. Scott Fitzgerald ou J. D. Salinger, autores do chamado Grande Romance Americano, a obra capaz de condensar o sentir da América.

“Não conheço a origem desse termo, sempre o ouvi em tom jocoso, por isso tenho-lhe alguma aversão. Parece uma frase comercial, ou apenas parva”, disse. “Os romances precisam de ser mundos contidos, não podem incluir tudo. Dou como exemplo The Great Gatsby [de F. Scott Fitzgerald, 1925], que desde logo tem a vantagem de incluir ‘great’ [grande] no título. É um dos romances mais curtos do género. Fala sobre a busca de uma certa ideia de sucesso, uma espécie de sonho americano, que redunda em desastre. Mas deixa de fora os negros ou os nativos. Não lhes dá resposta. Por isso, o conceito Grande Romance Americano vai por água abaixo.”

Utilizador assíduo da pausa dramática, Franzen terminou a passagem pela FLAD com uma sessão de autógrafos, não sem antes confessar que sempre se sentiu um homem velho. E feminino. “Já era velho aos sete anos e sempre fui um homem feminino. Não tenho grande consideração pela divisão que há entre homem e mulher, acho que todos somos as duas coisas, e obviamente não estou a falar do ponto de vista anatómico.”