Era suposto começar a falar antes das 11h00, mas só aos 10 minutos para o meio dia Francisco George tomou a palavra. Embora odeie esperar e fazer esperar, o atraso não lhe roubou o sorriso com que encarou as cerca de 400 pessoas que encheram o auditório da reitoria da Universidade Nova de Lisboa para o ouvir no último discurso enquanto diretor-geral da Saúde, esta sexta-feira.

“Tenho que agradecer, antes de mais nada. Trata-se de uma manifestação de solidariedade que não estava prevista. Tinha pedido uma sessão para apresentação de contas e não esta sessão, com este formato, que me comove e que me orgulha igualmente. Chego aqui e fico, naturalmente, surpreendido, mas grato e honrado.”

Ao fim de 44 anos de serviço público, 17 dos quais na Direção-Geral da Saúde — 12 como diretor-geral da saúde — e na véspera de completar 70 anos de idade, Francisco George ou “Xico”, como alguns amigos o chamaram, não teve mãos a medir para tantos agradecimentos individualizados, com a certeza de ter “esquecido muita gente”. Referiu todos os ex-ministros com os quais trabalhou, por quem sente “uma grande admiração” e de quem já era ou ficou amigo, da esquerda à direita. É que, como já tinha dito antes da cerimónia começar: “A Saúde Pública não é colorida. Não há caminhos para controlar uma epidemia, pela esquerda ou pela direita. É de base científica”.

As cadeiras do auditório da Nova não foram suficientes para dar assento a todos os que quiseram ir assistir ao seu último discurso, mas nada que fizesse demover quem o queria ouvir, nem intimidasse o “comunicador”.

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Francisco George, no seu último discurso como diretor geral da saúde

Francisco George contou histórias do passado, falou do irmão gémeo com quem o próprio tinha dificuldade em se distinguir até aos 15 anos, agradeceu, enalteceu, disse piadas, riu, fez rir, e revelou episódios. Como aquele em que o ex-ministro Paulo Macedo, no dia em que assumiu a pasta na João Crisóstomo, em Lisboa, o chamou ao seu gabinete. “Perguntou-me quem eram as melhores pessoas que conhecia, dedo de gestor avisado, pensei logo. E no fim pediu-me para ver uns pontos do Programa de Governo que iria apresentar.”

Mostrou fotografias que foram ilustrando os seus 69 anos, não esquecendo nesse álbum os colegas da Direção Geral da Saúde. E a descrição que fazia das imagens foi sendo polvilhada de vários momentos de risos e gargalhadas, com destaque, por exemplo, para aquela que exibia “quatro senhoras da DGS a serem surpreendidas a ver se havia verbas no Orçamento do Estado para comprar preservativos”.

Os jornalistas também não foram esquecidos. “É errado dizer-se mal dos jornalistas. Há que apoiá-los sempre. Atender sempre. Há uma aliança natural entre Saúde Pública e a comunicação social. Não há Saúde Pública sem jornalistas”, afirmou o ainda dirigente, que mais à frente aproveitou uma fotografia para fazer mais uma graça. “Entraram 150 mil crianças na escola naquele ano e o DN escolheu logo a foto onde eu estava. Começou aí a minha aliança com a imprensa”, disse, rindo, mostrando a capa do Diário de Notícias de 1957.

Antes dele, já o amigo e presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, tinha tomado o microfone para lhe dirigir vários elogios e recordar o percurso de luta conjunta. “Sempre foi um homem de serviço público e causas sociais”, garantiu Ferro Rodrigues, que o conhece desde os 13 anos.

“Quando penso num exemplo de servidor público penso no Francisco George. Quando penso em competência técnica penso no Francisco George. A Função Pública nunca se confundiu com burocracias inúteis e hierarquias fúteis. Deu a cara em momentos difíceis. Os governos passaram e ele ficou como a cara da saúde em Portugal”, elogiou o político e amigo, destacando ainda a sua grande capacidade de comunicar e gracejando com uma “grande qualidade que alguns veem como defeito: as palmadas fortes nas costas que para os mais frágeis exigia distância”.

E muitas outras personalidades da Saúde e colegas da DGS lhe deixaram uma mensagem de agradecimento e homenagem, que foram compilados num vídeo (que pode ver acima) exibido no auditório, depois de alguns problemas técnicos. Na plateia estavam presentes muitas dessas personalidades da Saúde: o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, e vários ex-ministros da Saúde (Leonor Beleza, Maria de Belém, Correia de Campos, Ana Jorge, Paulo Macedo, Leal da Costa), secretários e ex-secretários de Estado da Saúde, passando pelos conselheiros Manuela Eanes e Marques Mendes, bastonários das ordens profissionais da saúde, dirigentes dos vários organismos da Saúde, cirurgiões de renome. E nem Marcelo Rebelo de Sousa faltou à festa.

Na impossibilidade de estar presente fisicamente, por estar a visitar os concelhos fustigados pelos incêndios, o Presidente da República deixou uma mensagem para ser lida, onde destacou a “empatia” e “capacidade de fazer pedagogia” de Francisco George e anunciou a atribuição da Grã-Cruz da Ordem de Mérito, que Francisco George juntará à da Ordem do Infante D. Henrique, que recebeu de Jorge Sampaio.

Francisco George: “Acabei um namoro em nome do meu irmão gémeo”

A festa foi bonita e só houve uma coisa com a qual não concordou. A grande fotografia que compunha o cenário: “Reconheço que a fotografia tem qualidade [risos], mas devíamos pôr ali a equipa da DGS”. Até porque, como o próprio defende: “Brilhamos sempre com o brilho dos outros”.

Os recados de sempre e um último alerta

Mas não só de histórias e passado se desenhou este “adeus”. Francisco George fez questão de apresentar resumidamente as tais “contas” que pretendia e esgotou os últimos minutos a mostrar a evolução de vários indicadores relacionados com a Saúde Pública, que traduzem o trabalho feito pela “pequena equipa” da DGS. E insistiu nos recados de sempre:

“Temos de reduzir a exposição ao consumo do tabaco. Temos de reduzir o açúcar, o sal e ingerir alimentos com as calorias necessárias. E é preciso promover mais atividade física”, reiterou, sublinhando ainda a importância de vacinar as crianças.

Francisco George dirigiu-se ainda ao amigo Ferro Rodrigues na qualidade de Presidente da Assembleia da República para lhe fazer um apelo.

“Senhor presidente da Assembleia da República, se um doente com ébola quiser sair do internamento e apanhar o metro e ir até Alvalade ele pode sair porque o articulado da Constituição de 1976 só admite contrariar a vontade do cidadão se ele for portador de problema psíquico [decretado ou confirmado por autoridade judicial competente]. A Lei portuguesa tem de se adequar. É preciso que os deputados trabalhem estas questões. Altere-se a Constituição”, desafiou o ainda diretor-geral da Saúde, acrescentando que é preciso prever e permitir o internamento compulsivo em casos de doenças graves contagiosas pois essa impossibilidade é um “grande problema”.

“Não temos forma de obrigar um cidadão a tratar-se. Fica aqui este último alerta.”

No fim, foi aplaudido de pé e surpreendido com o anúncio de um Prémio de Saúde Pública com o seu nome. Mais aplausos. Com a tal “palmada forte nas costas” que lhe é característica, e que Ferro Rodrigues referiu no seu discurso, foi-se despedindo, um a um, de todos aqueles que se iam aproximando para lhe dar uma palavra de agradecimento e felicidades.

Como precisa de luta para se “sentir remoçado”, deixa a DGS já com a Cruz Vermelha Portuguesa em vista. “Em termos de mente e de físico a minha energia é aquilo que todos veem. Espero que [a candidatura] seja aceite.”