A edição anual da revista norte-americana Wine & Spirits está aberta em cima da mesa, acabada de comprar. Um post-it amarelo de tamanho considerável assinala uma página em particular que cativa a atenção de João Maria, um dos cinco filhos do produtor João Portugal Ramos, cuja empresa celebra 25 anos em 2017. De óculos postos, João inclina-se sobre a mesa e sorri: entre os 100 melhores vinhos do ano, de acordo com aquela publicação, está o Quinta da Viçosa 2012 (tinto), com 94 pontos em 100 — um dos poucos exemplos portugueses na lista. No escritório da Adega Vila Santa, em Estremoz, o entusiasmo é evidente, sobretudo quando nos recordam que a edição de agosto da Wine Advocate, do conhecido crítico Robert Parker, deu mais de 90 pontos a nove referências da casa.

As distinções, sejam elas internacionais ou nacionais, já não apanham o produtor completamente de surpresa. Essa é uma das vantagens de ter um negócio consolidado no mercado há mais de duas dezenas de anos. Um negócio que lhe leva o nome de peso emprestado. João Portugal Ramos já foi considerado o pai dos vinhos do Alentejo, um título que não rejeita, mas que relativiza. “Acho que o Alentejo teve vários pais. Dos enólogos em atividade sou talvez o mais antigo, mas conheci várias pessoas de outras gerações a quem o Alentejo muito deve.” O produtor está sentado à cabeceira de uma mesa de madeira maciça, rodeado pela família. O almoço, que inclui codorniz entre os pitéus, é comida por ele caçada.

João Portugal Ramos começou a trabalhar como enólogo consultor no início dos anos 1980 e, diz, teve a sorte de chegar à região dos montados numa altura em que “havia muito por fazer”. O produtor passou por quatro cooperativas alentejanas — Vidigueira, Portalegre, Reguengos de Monsaraz e São Isidro de Pegões –, onde protagonizou valiosas modificações e, em alguns casos, dedicou anos da vida profissional. O respeito por esses tempos é grande e garante que “foram as cooperativas que lançaram o vinho alentejano”. Mas onde há espaço para elogios, também o há para críticas: “As adegas cooperativas têm, hoje em dia, vergonha de se chamar cooperativas, não cabe na cabeça de ninguém. Elas podem ter tanto ou mais credibilidade do que um produtor privado. Sou absolutamente contra isso”, defende, enquanto dá mais um trago num copo de chá verde (em dias de muito trabalho, conta, recorre à “receita do costume”).

A adega, com diversos programas de enoturismo, ficou concluída em 2007. Atualmente, a linha de engarrafamento está a ser aumentada e o novo edifício ficará concluído até ao final do ano. © Divulgação

A sala de refeições da adega, onde nos sentámos à mesa com o produtor, foi construída do zero, bem como todas as infraestruturas em redor (ainda que a arquitetura tradicional sugira mais anos de existência). Nasceu tudo, aliás, do nada. Tinha o enólogo 36 anos quando plantou a primeira vinha à volta da casa (vizinha da adega). Mais tarde, e sem um tostão que tilintasse no bolso, decidiu criar a marca própria com recurso a financiamento bancário.

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“Comprei o terreno em 1987 e casámo-nos no ano seguinte”, aponta para a mulher Teresa Ramos, a quatro lugares sentados de distância. “Não havia muito dinheiro e pensei em plantar qualquer coisa para ajudar com os custos da casa. Cheguei a pensar em ameixas de Elvas. Mas… a tendência para o vinho era inevitável”, graceja (os avós maternos produziram vinho para consumo próprio e venderam uvas a granel, na região de Lisboa).

As uvas, mais redondas e monocromáticas do que as ameixas, não tardaram a despontar. Três anos depois surgia a primeira colheita, desafiando a convenção de que a qualidade em vinhas novas é apenas o resultado de uma década de espera. Esse primeiro vinho, curiosamente de talha, não chegou ao nariz e boca dos consumidores portugueses e viajou diretamente para a Suécia, país que ainda hoje continua a encabeçar a lista dos destinos que justificam os cerca de 60% de exportação. Na verdade, até a adega estar pronta, em 1997, o produtor não vendeu um único vinho em Portugal. Diz que foi uma questão de lealdade para com os muitos projetos de consultoria que entretanto acumulou — chegou a ser enólogo consultor de 25 adegas, em simultâneo, espalhadas pelo país.

Uma das vinhas de João Portugal Ramos está virada para Estremoz e, vista do céu, assume a forma de uma espiga. © Divulgação

Foi precisamente esse trabalho que levou a atual AICEP — Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal — a pedir que João Portugal Ramos fosse uma espécie de embaixador dos vinhos portugueses. Foram muitas as apresentações em que o enólogo discursou perante vastas audiências, levando consigo referências das marcas para as quais trabalhava. “Costumo dizer que andei com a bandeira de Portugal às costas durante muito tempo”, afirma, enquanto recorda a vez em que falou diante de 800 pessoas, em Toronto, ou de quando o seu discurso foi traduzido, em simultâneo, para inglês, japonês e chinês.

Desses anos traz diversas lições e conta com gosto que, atualmente, há muito mais conhecimento e reconhecimento face ao vinho português. “Graças a Deus! Antes as pessoas não pensavam em Portugal enquanto produtor de vinho e a imagem que projetávamos lá para fora era pouca… e má.” À exceção dos Portos, os vinhos eram vítimas de um preconceito generalizado, uma realidade que se tem vindo a esbater de copo em copo. Não é por acaso que João defende a “marca Portugal”.

Do todo para a parte, o Douro é palco de um projeto por ele igualmente acarinhado, resultado de uma ideia que fermentou à mesa de jantar na companhia do enólogo e amigo de infância José Maria Soares Franco. Certa noite, com Barca Velha de um lado e Marquês de Borba Reserva do outro, os dois homens do vinho chegaram à conclusão e necessidade de se aventurarem em conjunto pelos socalcos do Douro. Brotou assim, tal qual uma uva de casta cobiçada, o Duorum, corria o ano de 2007.

Os atuais hectares de vinhas foram comprados a 80 pessoas diferentes e, já de vinho do Porto em riste, João Portugal conta divertido que, num dos casos, a intenção de compra ficou registada nas costas das instruções de uma máquina de lavar a roupa, tamanha era a pressa de realizar a aquisição e a falta de papel.

Passados 25 anos de um projeto que nasceu espontaneamente, o produtor tem 140 pessoas a trabalhar para ele (incluindo dois dos cinco filhos), sendo que a produção anual ronda os 6 milhões de litros. Do vasto portefólio contam-se 13 marcas e 32 referências, que se distribuem por cinco regiões: Alentejo, Douro, Vinhos Verdes, Beiras e Tejo. E poderão estes ser os primeiros 25 anos de um legado a passar de geração em geração? João Portugal Ramos não sabe responder, admite as dificuldade de tamanha façanha e fala numa empresa e negócio de paixão, como no primeiro dia em que percebeu que era no vinho que estava a sua felicidade.