Alguém que tivesse passado uma vista de olhos pela imprensa espanhola ontem à noite ou hoje, dificilmente poderia adivinhar a partir dali que aquela figura que levanta tantas críticas e preocupações era a mesma que ia receber esta segunda-feira o galardão de melhor jogador do mundo pela quinta vez. Mas só mesmo os mais distraídos poderiam achar que seria assim tão diferente: aos 32 anos, o melhor atributo de Cristiano Ronaldo é conhecer-se tão bem a si próprio. Porque mais do que nos golos, nas assistências ou nos títulos, é aí que faz a diferença.

Ninguém poderia imaginar que, logo na primeira mão da Supertaça de Espanha, o avançado seria expulso e, na sequência dos protestos e de um empurrão ao árbitro, ficaria cinco jogos de castigo. Curiosamente, uma partida em que entrou e fez logo a diferença, apontando o momentâneo 2-1 para os merengues (acabaria em 3-1). Desde que voltou, tem estado de mira desafinada na Liga, com apenas um golo em cinco encontros, o que causa “apreensão”. Mas na Champions vai com cinco remates certeiros em três jogos. Mas a verdade é esta: depois de mais uma longa temporada, que terminou com a presença na Taça das Confederações, é provável que o melhor Ronaldo só apareça a partir de dezembro, pensando também que, após o final da época, haverá Campeonato do Mundo.

Florentino Pérez, presidente do Real Madrid, admitiu na semana passada em entrevista ao El Español que Ronaldo tem uma obsessão pelas vitórias coletivas e pelos triunfos individuais. E o avançado trabalha para isso, de forma calculada, com muitos sacrifícios à mistura, com um pensamento cada vez mais amadurecido. Foi assim que conseguiu ser o melhor do mundo. Pela quinta vez. É um recordista, a par de Messi.

Mas este foi um ano com tantas incidências que mais pareceram cinco. Dos recordes de golos aos triunfos pelo Real Madrid, do nascimento dos gémeos (e o quarto filho vem a caminho) ao aeroporto da Madeira, teve pela primeira vez problemas com a justiça que chegaram a colocar em perigo a continuidade na capital espanhola. Costuma-se dizer que o primeiro troféu é sempre especial; por todo este contexto, o quinto não fica nada atrás.

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A história com 60 anos que foi feita e a história com 12 anos para fazer

Chamaram-lhe o “Doblete de Oro” por causa do prémio monetário que trouxe com ele (40 milhões de euros, com 1,5 milhões para cada jogador), mas teve um significado sobretudo desportivo para Cristiano Ronaldo (verdade seja dito, mais milhão, menos milhão, não será isso que faz a diferença ao final do mês na conta do jogador): quase 60 anos depois, o Real Madrid ganhou a Liga e a Champions na mesma época.

Se os dois feitos, juntos, fizeram história, também é verdade que, isolados, não perderam significado: a conquista do Campeonato conseguiu quebrar um jejum de cinco anos sem alcançar o troféu (a última vez que tinha acontecido tinha sido entre 1990 e 1995, ainda Ronaldo começava a dar os primeiros passos na Madeira) e onde até o Atl. Madrid se conseguiu intrometer na hegemonia do Barcelona; o triunfo na Liga dos Campeões, o terceiro em quatro anos, foi o primeiro em épocas consecutivas desde o AC Milan de Arrigo Sacchi no final dos anos 80/início dos anos 90, altura em que se jogava ainda a Taça dos Clubes Campeões Europeus.

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Além destas vitórias, somam-se ainda o Mundial de Clubes no final do último ano (onde Ronaldo voltou a ter papel determinante com um hat-trick), a Supertaça Europeia e a Supertaça de Espanha, em agosto de 2017.

Na Seleção, e depois de ter falhado a conquista da Taça das Confederações na primeira participação de sempre de Portugal (derrota com o Chile nas meias-finais no desempate por grandes penalidades), onde a equipa ficou na terceira posição, Ronaldo mostrou que estava apostado em garantir a passagem à fase final do Campeonato do Mundo da Rússia e, após ter falhado o primeiro jogo por lesão (derrota na Suíça), agigantou-se.

Quatro golos com Andorra (casa, 6-0), um com as Ilhas Faroé (fora, 6-0), dois com a Letónia (casa, 4-1), dois com a Hungria (casa, 3-0), dois com a Letónia (fora, 3-0), três com as Ilhas Faroé (casa, 5-1) e mais um com Andorra (fora, 2-0) fizeram um total de 15 nos nove triunfos seguidos nacionais na fase de qualificação, que garantiram uma vaga direta na competição do próximo Verão e foram apenas superado pelos 16 do polaco Lewandowski. 12 anos depois, Ronaldo estará no seu quarto Mundial. Que deverá ser o último. E quer deixar marca.

Os recordes de golos no Real, na Seleção e na Champions

Andámos tantas vezes a juntar Ronaldo e golos na mesma frase que algum dia haveria de ser diferente. E foi, neste último ano. Em forma de hat-trick: na Champions, no Real Madrid ou na Seleção, o avançado perpetuou a sua marca como quase mais nenhum fez. E como gosta de desafiar os impossíveis, a saga ainda não acabou.

Nos merengues, o português conseguiu ultrapassar a fasquia dos 400 golos, reforçando a posição de melhor marcador de sempre do clube, bem à frente de Raúl (323) e Di Stéfano (308). E conseguiu esse feito em menos de dez temporadas, ao contrário destas duas incontornáveis figuras do Real Madrid. “Com dedicação e trabalho como sempre, as coisas surgem naturalmente. Sinto-me feliz, afortunado e sou deste planeta”, afirmou este extraterrestre que se veste de humano.

Na Liga dos Campeões, o avançado tornou-se o primeiro a alcançar os 100 golos nas provas europeias e logo numa altura crucial da competição, onde desatou a marcar dois e três golos por jogo com Bayern. Atl. Madrid e Juventus, conseguindo ainda ser o melhor goleador da Champions na passada edição. Só agora, na semana passada, outro jogador repetiu o feito: Messi, claro. “É uma honra, nunca pensei”, comentou.

(Mais um) recorde de Cristiano Ronaldo ao pormenor

Na Seleção Nacional, o madeirense entrou também no restrito grupo dos melhores marcadores de sempre de seleções, ocupando nesta altura o quarto lugar apenas atrás de Ali Daei (109), Puskas (84) e Kunishige Kamamoto (80). Além de ser o segundo melhor europeu, o capitão nacional conseguiu também ultrapassar grandes nomes do futebol mundial como Sándror Kocsis ou Pelé.

A última oportunidade para sair de Madrid antes do final da carreira

A notícia caiu que nem uma bomba: um clube chinês estaria disposto a pagar 200 milhões de euros pelo passe do português, acrescentando a isso um salário anual de 120 milhões de euros. Era muito, muito dinheiro, que sobretudo teve o condão de colocar em causa a continuidade do jogador no Real Madrid (e é fácil perceber que valores desta natureza não são propriamente assustadores para um PSG, por exemplo).

Mais do que uma possível saída, que terá mesmo chegado a ponderar mas não para qualquer clube asiático, Ronaldo quis marcar uma posição este Verão. Chegado em 2010 à capital espanhola, o avançado nunca se sentiu devidamente “amado” e, em alguns momentos, não conseguiu mesmo evitar a manifestação dessa frustração pelos assobios que ouviu em partidas menos conseguida no Bernabéu. As críticas à imprensa local também existia. No entanto, e até colocando aqui outra possível melhoria de contrato de parte, havia algo mais.

Com os jornais espanhóis a garantirem que o madeirense tinha expressado a Zidane a vontade de rumar a outras paragens, e com a imprensa inglesa a garantir que a passagem por Madrid tinha chegado ao fim (abrindo a porta a eventuais negócios do Manchester United ou do Chelsea), percebeu-se que o problema passava pela forma como os merengues tinham abordado a acusação de fraude fiscal ao jogador. Que, entre outros fatores, teve como gota de água uma notícia que circulou e que dizia que o clube tinha pedido à comunicação social para, quando abordasse essa questão, não colocasse o jogador com a camisola dos blancos e o tratasse apenas como jogador português. Tudo mudou quando Florentino fez a defesa pública do número 7.

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A acusação de fraude fiscal, a inquirição e a defesa da inocência

A acusação de ter defraudado o Fisco espanhol em quase 15 milhões de euros, por ter alegadamente aproveitado uma estrutura societária para ocultar valores ligados aos direitos de imagem quando estava no Real Madrid, foi um dos capítulos que veio mudar a vida do jogador que, até aí, nunca tinha registado qualquer problema com a justiça. E foi marcante para Cristiano Ronaldo, que ainda hoje defende a 100% a sua inocência no processo e fica visivelmente incomodado quando o assunto é referido em público.

Numa primeira fase, ainda chegou a ser admitido por fontes ligadas ao jogador a possibilidade de pagar o valor e arrumar o caso. Mas Ronaldo não quis: aceitar isso seria assumir que tinha feito algo à margem da lei, algo que recusa por completo. Assim, a 31 de julho, foi ouvido pela juíza de instrução de Pozuelo de Alarcón, audição essa que, apesar de ser à porta fechada, rapidamente saltou na totalidade cá para fora.

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“Nunca ocultei nada, nem tive intenção de fugir aos impostos. Se não me chamasse Cristiano Ronaldo nem estaria aqui”, atirou num dos momentos mais tensos da inquirição. “O Jorge [Mendes] é meu representante e amigo. Negoceia as transferências com os clubes, negoceia as condições, mas não trata de temas jurídicos nem fiscais, nem de direitos de imagem. Não sabia de nada nem quero saber, confiava completamente nos meus assessores. Fiz sempre tudo bem e dentro da legalidade, sempre disse aos meus assessores para que tem tudo em dia e corretamente pago porque não quero ter problemas Tenho apenas o sexto ano de escolaridade e a única coisa que sei fazer bem é jogar futebol. Se me dizem que não há problema, acredito”, destacou nessa audição.

Apesar das explicações, e de acordo com a imprensa espanhola, a hora e meia de inquirição não terá convencido a juíza. Em paralelo, o jogador recusa chegar a acordo e a sua defesa (que entretanto mudou, por vontade de Ronaldo) falou de uma acusação “inconsistente, sem fundamento e assente na utilização arbitrária de critérios contrários ao Direito Tributário”. Mas, caso seja acusado, poderá enfrentar uma pena entre 15 meses e cinco anos.

Os gémeos, o aeroporto Cristiano Ronaldo e os novos negócios

Foi na vida pessoal que mais coisas mudaram nas rotinas de Cristiano Ronaldo. E naquilo que o jogador sempre fez questão de dizer que era o mais importante: no final de junho, o melhor do mundo, que já era pai de Cristianinho, apresentou a primeira imagem com os dois filhos gémeos, Mateo e Eva. “Tão feliz por poder segurar os meus dois novos amores da minha vida”, escreveu nessa mensagem. Ainda assim, gerou-se um grande ruído em termos sociais por ter recorrido de novo a uma barriga de aluguer (basta recordar a polémica entrevista de Gentil Martins ao Expresso, com todas as respostas que se seguiram), algo que sempre passou ao lado do avançado. E o quarto filho já está a caminho: a namorada, Georgina Rodríguez, está grávida.

Ronaldo partilha primeira foto com os filhos gémeos. Dolores e Cátia Aveiro também

Este foi também o ano em que o aeroporto da Madeira se passou a chamar Cristiano Ronaldo. E também aqui a decisão não foi aceite de forma unânime, algo que não passou ao lado do jogador no discurso de agradecimento, no final de março deste ano. “Queria agradecer a coragem e a firmeza para tomar esta decisão. Não sou hipócrita, fico feliz e honrado. Toda a gente sabe que tenho orgulho das minhas raízes e da minha terra. Sei que a decisão não agradou a todos, não sou hipócrita e assumo que algumas se calhar estão aqui neste momento”, disse. Houve uma coisa que pareceu gerar consenso: os comentários ao busto do avançado, que girou por todo o mundo…

Também nos negócios, o madeirense alargou o seu “império” ao mundo das apps, tornando-se sócio maioritário da portuguesa Thing Pink. Nessa altura, foi também falado um novo projeto na área digital. Antes, Cristiano Ronaldo já tinha investido na hotelaria e, mais recentemente, no mundo do fitness. Isto fora todos os acordos e patrocínios com algumas das maiores marcas mundiais, que lhe continuam a render milhões por ano.