“Saia, senhor primeiro-ministro!”, disse Paulo Portas a José Sócrates no debate do Estado da Nação em julho de 2010. Sete anos depois, o CDS liderado por Assunção Cristas apresenta uma moção de censura ao Governo, para o primeiro-ministro sair, sem que ninguém lhe diga: “Saia!”. Talvez o debate não fosse mesmo para António Costa se ir embora. Há uma semana, no debate quinzenal logo a seguir à segunda tragédia dos incêndios, a líder do CDS até tinha uma frase no discurso escrito distribuído aos jornalistas: “O senhor mostrou não estar à altura de liderar o Governo. Não nos envergonhe mais e saia!” Mas a frase não foi dita. Assunção Cristas não o afirmou na semana passada nem o disse de forma definitiva no dia em que apresentou a moção de censura ao Governo por causa da tragédia dos fogos. Porquê? Porque dizê-lo era irrelevante.

Este não era o dia para o Governo sair, como toda a gente sabia. Ninguém mandou Costa embora, até porque não havia alternativas — e moções de censura construtivas ainda não existem em Portugal: no PS, Costa sucederia a Costa; o PSD não tem liderança; Cristas comanda a oposição mas precisaria do PSD para governar; e a esquerda está para durar enquanto tiver ganhos de causa. No fundo, a ninguém interessava aprovação da moção.

Mas não servindo para derrubar o Governo, esta tarde não serviu para nada? Serviu. Nem que fosse para o Governo assumir as responsabilidades pelas tragédias e para pôr à prova a solidez do apoio da esquerda — que o Presidente da República já classificou como “equívoco”. A moção de censura serviu para se perceber que o PCP mantém as distâncias, que o Bloco não elogia e que Costa preferia um tango a dois do que uma dança a três. A esquerda também fez censuras e não deu confiança, nem sequer aplaudiu a rejeição da moção do CDS, mas não pôs em causa a legislatura.

O CDS evidenciou as fragilidades do Governo na prevenção e na gestão das catástrofes. Conseguiu sublinhar os erros de António Costa, a falta humildade e até o sentido de Estado. A frase mortal de Cristas é esta:

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Os assessores de comunicação e de imagem, podem ajudar, mas não mudam a natureza das pessoas e o estatuto que não têm. Quando o país precisava de um estadista constatou que tinha apenas um político habilidoso, sem fibra nem caráter.”

Com a referência ao caráter — um tipo de ataque que Costa não costuma tolerar — ficou provado como o primeiro-ministro tomou três Xanax antes de entrar no hemiciclo para ter ignorado aquelas palavras. Manteve-se sempre sem se irritar, sem fazer as ironias e os jogos de palavras do costume. Cristas pessoalizou, pisou a linha ao falar da natureza das pessoas, da fibra e da personalidade. Costa ficou-se. É a prova de que está ferido, sem capacidade de reação, limitado para responder aos ataques mais agressivos. Isto prova que o líder do PS sabe que ainda não está em condições de aparecer diante dos portugueses com o tom de arrogância com que se costuma apresentar no Parlamento (que aliás é habitual nos chefes de Governo). Com 110 mortos no cadastro do Governo, este é o momento da humildade.

Foi assim que começou o seu discurso. As primeiras palavras do primeiro-ministro começaram por assumir tudo: “Estamos aqui porque as responsabilidades têm de ter consequências” ou “porque o sentimento de insegurança exige uma resposta”, ou porque “as perdas de vidas não podem ser ignoradas”. Apenas mais uma fase, e parecia que ia dar razão ao CDS: “É por isso que o Governo aqui está como órgão de condução da política geral do país a assumir-se como o primeiro responsável perante a Assembleia da República”. E acabou-se o ato de contrição. O resto foi o regresso da enumeração das medidas e à “frieza” dos números, como Marcelo Rebelo de Sousa lhe tinha apontado.

A líder do CDS fez-lhe pelo menos oito perguntas muito concretas sobre o que falhou, desde a exoneração da ministra ao reforço de meios. Costa não respondeu ou deu meias respostas, algumas delas enganadoras como as que foi dando ao longo do debate sobre o reforço de meios após o fim da fase Charlie.

A ironia da tarde foi ver Catarina Martins, do Bloco de Esquerda, a colocar questões não muito diferentes da direita sobre as falhas na prevenção e na mobilização de meios perante as evidências e os avisos sobre as condições climatéricas. Para se distanciar, classificou a moção de censura do CDS mais uma vez como “obscena”. O bloquista Jorge Costa ainda iria mais longe, mas a coordenadora do Bloco assumiu que neste ano de risco “o Governo devia estar melhor preparado”. E enumerou uma série de propostas que foram recusadas e que contribuiriam para o reforço do combate e da prevenção. O Bloco criticou e não confiou.

O PCP fez o mesmo, embora tivesse ido mais longe no contra-ataque à direita. Quem ouvisse João Oliveira, líder parlamentar comunista, ficava com a ideia de que o país só arde por causa das políticas de direita e que as políticas de esquerda são imunes ao fogo. A resposta mais esperada do PCP foi quando Oliveira avisou que a “rejeição” da moção de censura “não pode ser considerada como motivo de confiança”, embora depois dissesse que estava a falar das “opções e decisões tomadas quanto à prevenção e combate aos fogos florestais”.

Era a resposta a Marcelo Rebelo de Sousa, quando o presidente disse no seu discurso que a aprovação da moção de censura evitava um “equívoco”. Para o Presidente da República, essa dúvida tinha a ver com solidez do apoio do PCP ao Governo. Ora a moção passou e o apoio dos comunistas não se tornou menos equívoco. Não é evidente que a rejeição da moção de censura tenha servido para “reforçar o mandato para as reformas inadiáveis”.

Com o PCP a distanciar-se, António Costa voltou-se para o Bloco a dar a entender que preferia uma relação a dois do que um triângulo político, quando disse que “os votos do PS e do BE ainda não formam uma maioria absoluta” — era uma referência implícita ao facto de o PCP ter chumbado o banco de terras ao lado da direita. “Ainda” não formam maioria absoluta. Quem sabe se no futuro? Era um convite?

No final, Luís Pedro Mota Soares, do CDS ensaiou a tentativa de co-responsabilização de toda a esquerda. “Se o Governo que falhou se mantiver em funções, essa será a opção e responsabilidade do BE, do PCP e do PS.” Mas toda a gente sabe que dizer isso também fazia parte do teatro desta tarde.