No verão do ano passado, “Stranger Things” apareceu na Netflix com estrondo. Um estrondo comedido, vá, ganhou efeitos de culto alguns dias depois da estreia. No início era um burburinho, nas semanas seguintes não se falava noutra coisa. Porquê? Há fenómenos complicados de explicar, mas a série criada pelos irmãos Matt e Ross Duffer não é um deles.

Desde o início que “Stranger Things” mexe com uma geração que sentiu a cultura popular de meados dos anos 1970 até meados dos 1990. Verdade, o intervalo é grande, mas é por comprimir tão bem a nostalgia por esse espaço temporal que agrada a tanta gente. Parece uma série de terror mas não é. Parece uma série de ficção científica mas não é. Parece uma série sobre crianças mas também não é. Às vezes até parece uma versão amordaçada de “Freaks and Geeks”, só que viaja para lá disso. O que é “Stranger Things”? Uma exploração inteligente dos géneros atrás referidos com um encaixe de génio de imaginação infantil.

O universo de “Stranger Things” é feito de nostalgia, mas é construído a partir das ações de um grupo de crianças. Eles vivem na ficção o que os adultos de agora consumiram e imaginaram ao longo daquela margem de vinte anos. As suas brincadeiras são aquelas que alguns viveram ou só imaginaram. Mais do que a pura nostalgia, de tirar todo o suminho daí, os Duffer esfregam na cara o quão sedentos somos pelas memórias de um lugar onde fomos felizes: a infância. Aquele tempo em que havia férias grandes e duas das maiores preocupações da vida passavam por lanchar e tentar ficar acordado até mais tarde.

A segunda temporada chega esta sexta-feira à Netflix. Com ela uma nova aventura de Mike, Dustin, Lucas, Eleven e Will. Com o regresso vale a pena pegar em algumas das referências sugeridas durante a primeira temporada, a maior parte delas extraídas do cinema, a maior fonte de inspiração dos irmãos Duffer.

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[o trailer da segunda temporada de “Stranger Things”]

“E.T. – O Extra-Terrestre” (Steven Spielberg, 1982)

Há coisas na cabeça que são mesmo muito complicadas de explicar. O “E.T.” provavelmente faz parte do imaginário de toda a minha geração mas passou-me completamente ao lado quando era garoto. Tinha medo. Essa é a parte complicada de explicar. Comecei a ver filmes de terror com uns cinco anos mas não suportava olhar para o bicho criado por Spielberg. Aterrorizava-me. O Freddy Krueger, de “pesadelo em Elm Street”, nem por isso. Apesar disso, tornei-me numa pessoa decente.

“E.T.” é uma das inspirações mais óbvias de “Stranger Things”. As bicicletas estão lá – até perseguições! -, há uns maus do governo – ou de coisa parecida – que andam por lá atrás de miúdos como se estes fossem adultos e há, claro, a relação crescente entre Mike e um ser que, não sendo de outro mundo, não é como ele: Eleven.

Winona Ryder

Qualquer rapaz nascido nos 1980s que se preze ficou apanhado com Winona Ryder durante as suas aventuras com Tim Burton (“Beetlejuice: Os Fantasmas Divertem-se”, 1988, e “Eduardo Mãos de Tesoura”, 1990). Winona é um dos elementos fulcrais para o sucesso de “Stranger Things”, como Joyce Byers, uma mãe desesperada por encontrar o seu filho desaparecido e que entra numa espiral de loucura só compreendida pelo espectador. Por vezes é um sofrimento caricato, exagerado, lembrando mães meio avariadas de outros filmes, como Margaret White (Piper Laurie) em “Carrie” (1976) de Brian De Palma.

“Poltergeist, o Fenómeno” (Steven Spielberg, 1982)

Spielberg novamente e poder-se-iam citar mais alguns filmes seus — “Encontros Imediatos de Terceiro Grau” (1977) ou “Os Goonies” (1985) — mas “Poltergeist” tem uma influência subtil e importante em “Stranger Things”: o efeito que o sobrenatural pode ter no seio familiar. É por aí que a série perde o véu do terror – tal como o filme de Spielberg – e engata num drama maior que afeta várias personagens ao longo dos episódios. É impossível o sofrimento de Winona Ryder e as suas tentativas de comunicar com outra dimensão não pesarem sobre o espectador.

John Carpenter

Todo o John Carpenter dos 1980s? Talvez até o de antes e o de depois. Mas traz-se John Carpenter para a conversa por causa de outro assunto: a banda-sonora composta por Kyle Dixon & Michael Stein. Parte do sucesso de “Stranger Things” passa também pelas atmosferas que cria com a sua banda-sonora, com instrumentais que recapitulam bem a licão dada por John Carpenter e os seus sintetizadores em filmes como “Assalto à 13.ª Esquadra” (1976) ou “O Nevoeiro” (1980).

John Hughes / “Pesadelo Em Elm Street” (Wes Craven, 1984)

Há toda uma vivência com as personagens adolescentes de “Stranger Things” que habitam num local que até então só poderia ser imaginado: o que aconteceria se John Hughes realizasse “Pesadelo em Elm Street”. Há as cenas no liceu, ou quando Steve sobe pela janela até ao quarto de Nancy, mas talvez o momento em que isso se concretiza melhor é durante a festa em casa de Steve, quando Barbara desaparece. E tem que se dizer, Hughes não faria melhor do que os Duffer.

Dungeons & Dragons

Numa das primeiras cenas da primeira temporada, Mike, Dustin, Lucas e Will estão a jogar “Dungeons & Dragons”. Há pouca probabilidade de fazer parte dos grupos em Portugal que jogava isto nos 1980 e adiou as possibilidades de perder a virgindade na adolescência, mas há todo um universo associado ao jogo criado por Gary Gygax e Dave Arneson que fazia parte do universo nerd de qualquer miúdo que era nerd durante os anos 1980 e a primeira metade dos 1990s. E o jogo de tabuleiro serve também para construir o próprio universo dentro da série, é a tal coisa que se falava no início, o universo das crianças a tomar conta da realidade (neste caso é ficção, mas é a realidade deles).

“Twin Peaks” (David Lynch & Mark Frost, 1990) / “Debaixo da Pele” (Jonathan Glazer, 2013)

A realidade paralela que existe no universo de “Stranger Things”, referida como “The Upside Down”, é devedora do Black Lodge de “Twin Peaks” ou do cenário onde Scarlett Johansson revela a sua verdadeira forma no magnífico “Debaixo da Pele”. A estranheza de um e o vazio do outro fundem-se para a criação de um sentimento de abstração e de horror pelo desconhecido perfeito quando “Stranger Things” leva o espectador para outra dimensão. Mais do que o terror do que ali habita é o medo do vazio que se instaura no espectador. O vazio dificilmente é tão aterrorizador na televisão como em “Stranger Things”.

“Silent Hill” (Konami, 1999)

Um videojogo? Ah pois. Até mais, a conversa poderia ser só sobre isso. Os irmãos Duffer foram buscar muito à forma como este jogo criado por Keiichiro Toyama instaurou ambientes de horror nos videojogos. Em “Stranger Things” a tensão entre realidades, a abstração da dimensão má – vamos chamá-la assim – e a pele de galinha permanente em alguns episódios é devedora da cidade fantasma de Toyama. Tanto num como noutro, nunca se sabe bem o que está à espera. E mesmo que isso seja nada, o nada é uma tensão permanente porque pode tornar-se qualquer coisa a qualquer momento.