Quem ainda não percebeu nada do que aconteceu, para usar uma expressão em voga, devia ler esta passagem de um discurso sobre os poderes presidenciais. Não custa nada: “Se houver uma maioria absoluta de um partido ou coligação e com um líder forte, o Presidente tende a apagar-se. Se for uma maioria absoluta com uma coligação instável, o Presidente tem mais peso. Se houver uma maioria relativa, o Presidente ganha ainda maior relevo. Se houver crise nos partidos, cisões e instabilidade no Parlamento, o Presidente pode chegar a ter um poder particularmente decisivo, embora sempre no respeito da Constituição. Conta muito o estilo do Presidente.”

Sabe quem disse isto? Sim, foi Marcelo Rebelo de Sousa no discurso mais importante da sua candidatura presidencial, em outubro de 2015, na Voz do Operário. Foi quando pôs em cima da mesa tudo o que pensava sobre os poderes presidenciais. Quem manifestar surpresa com a atuação do Presidente, como agora parecem demonstrar alguns ilustres os socialistas, é porque andaram distraídos. Ou então inebriaram-se de tal modo com o namoro da coabitação que se esqueceram de Marcelo Rebelo de Sousa como o Presidente previamente anunciado pelo próprio como sendo mais interventivo neste cenário: Governo minoritário com um apoio parlamentar frágil.

Resumindo, se o Governo é fraco, o Presidente é forte. Se o Governo é mais forte, o Presidente é mais fraco. E se o primeiro-ministro pode ajudar a tornar forte um Executivo fraco, António Costa teve força ao longo destes dois anos — até se comportar nas tragédias como se estas pudessem ser geridas politicamente com os timmings de outras crises menos graves. Os mais de 100 mortos e a “frieza” de Costa enfraqueceram-no. E os primeiros-ministros fracos fazem os presidentes fortes, como já foi dito aqui.

Na ‘Marcelolândia’ os homens amuam e o Presidente é que anda “sempre a colar coisas”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Alguns socialistas estão preocupados com o facto de o regime semi-presidencialista de pendor parlamentar estar a inclinar-se para uma certa presidencialização? Têm razões para ficar preocupados. O Marcelo-comentador uma vez descreveu Cavaco como um presidente “herbívoro”, com uma conceção minimalista dos poderes. O Marcelo-Presidente é assumidamente carnívoro. Por menos do que isto, no passado, nasceram guerras e ódios que duraram vidas: Eanes-Soares, Eanes-Sá Carneiro, Soares-Cavaco, Sampaio-Santana, Cavaco-Sócrates. Numa situação normal, um primeiro-ministro forte ganha o embate ombro a ombro com o Presidente da República. Força o conflito. Espera que a bomba atómica funcione a seu favor. Encurrala o Presidente no tudo ou nada dos seus poderes. Se viesse de uma posição mais favorável, António Costa estaria neste momento a comprar uma guerra terrível com Marcelo. Ainda não o fez. Não sabemos se o fará. Talvez espere por uma oportunidade melhor. Este não é o momento para quem tem o braço estraçalhado fazer um braço de ferro.

Temos duas maneiras de ver a questão: a mais institucional, a partir do que o candidato Marcelo dizia da sua interpretação dos poderes presidenciais; ou a mais pessoal, que remete para a história do maquiavélico, calculista, e pouco fiável ma católico dr. Rebelo de Sousa. Mas vamos primeiro à análise institucional.

Marcelo atribui-se a si mesmo um poder “decisivo”

Afinal, o que Marcelo anunciou na Voz do Operário sobre o futuro Presidente Rebelo de Sousa era mesmo para levar a sério. Naquele discurso de campanha, lembrou que tinha sido deputado constituinte e que toda a vida ensinara a Constituição, portanto, tinha legítima autonomia para a interpretar se chegasse às mais altas funções. Na época, o discurso foi muito criticado à direita, porque Marcelo aceitava a “geringonça” em termos únicos na sua área política e dizia que “cabemos todos em democracia”, onde não há inimigos, contrastando em tudo com Cavaco Silva e com o PSD. A esquerda ficou descansada, mas não reparou nas letras pequeninas daquele contrato eleitoral.

Marcelo acusa Governo de reação especulativa e avisa: “Chocado ficou o país”

Uma das chaves para perceber o que aconteceu estas semanas está na frase que abre este texto. Marcelo colocou lá todos os cenários. Para um cenário de maioria absoluta com um líder forte” (atenção, porque com um líder fraco seria diferente), o Presidente apaga-se. Já se a coligação da maioria for instável (e a “geringonça” é muito estranha deste ponto de vista) o Presidente tem mais peso. Numa maioria relativa, segundo Marcelo, Belém ganha “mais relevo”. Aí está: este Governo não tem sequer maioria relativa, o PS tem uma minoria com um original suporte parlamentar. E chegamos assim ao cenário que lido com os olhos de hoje é onde reside o enorme poder presidencial:

Se houver crise nos partidos, cisões e instabilidade no Parlamento, o Presidente pode chegar a ter um poder particularmente decisivo, embora sempre no respeito da Constituição.”

Rebelo de Sousa atribuiu-se desta forma, a si próprio, um poder “decisivo”. Não há instabilidade no Parlamento, mas também não se percebe que coerência na estabilidade existe. Viu-se na moção de censura. E Marcelo já tinha avisado no discurso duro e “chocante” de Oliveira do Hospital sobre a moção: se o Governo caísse acabava-se um “equívoco”, que seria o apoio hesitante do PCP; se continuasse, saía reforçado, algo que a própria esquerda já rejeitou. Ora tudo isto significa, aos olhos de Belém, um incremento dos poderes presidenciais. E quem não percebe isto ainda não percebeu nada.

Há mais. Acompanhe o raciocínio: Marcelo deu tanta força desde o início a este Governo, que António Costa foi beneficiando da perceção de que tinha um apoio sólido baseado no Parlamento mas também na colaboração participante do Presidente como o quarto pé da “geringonça”. Quando nestas circunstâncias concretas Marcelo tira o tapete ao Governo, António Costa perde Belém e fica apenas apoiado na esquerda parlamentar. Agora, quando Bloco e PCP não censuram mas criticam sem dar confiança, o Governo fica com um suporte ainda menos garantido. Não é o Governo que é apoiado. São os Orçamentos de Estado que são aprovados enquanto servirem de ganhos de causa aos parceiros. Fim de raciocínio: quem ganha poder? Marcelo Rebelo de Sousa, que tem horror ao vazio e ocupa todas as parcelas de poder que o Governo deixa por cobrir.

Depois, temos o novo contexto à direita. Sem adivinhar as tragédias que se avizinhavam, o Presidente já tinha alertado para o segundo ciclo pós-autárquicas. E se antes dizia coisas para a direita que a direita não aproveitava, o novo ciclo de reforço presidencial coincide exatamente com a saída de Pedro Passos Coelho da liderança do PSD. Um dos problemas de Marcelo era não ter interlocutor no seu próprio partido. Não se sabe se agora terá um interlocutor ideal entre Rui Rio e Pedro Santana Lopes, depende do comportamento do novo presidente do partido depois de janeiro.

Marcelo, o católico: maquiavelismo de rosto humano

Frase final do parágrafo decisivo: “Conta muito o estilo do Presidente”, disse também Marcelo em 2015. Como se tem visto, conta imenso.

O estilo não são apenas os famosos afetos, mas também. Com a brincadeira dos abraços e dos beijinhos mais as selfies, Marcelo Rebelo de Sousa conseguiu não só uma enorme popularidade, mas uma grande proximidade aos portugueses — real ou percecionada. Isto é muito poder. Perante um Governo minoritário, o Presidente tem as costas quentes pelo povo. E isso dá-lhe toda a autoridade sobre o Governo no momento de tomar posições difíceis. É uma posição presidencialista-populista? Sim. E que seria negativa se fosse usada para maus fins. Mas poucos dirão que a demissão de uma ministra cujo exercício do poder é passageiro por natureza seja mais importante que a irreversabilidade de 100 mortos.

PS. Críticas a Marcelo por “demagogia”, “populismo” e “exorbitar poderes constitucionais”

E se cabe aos Presidentes da República interpretarem o sentimento nacional, foi isso que Marcelo fez, porque Costa não percebeu nada. E aqui reside outra componente da presidencialização do atual tabuleiro político. O Presidente está mais próximo dos portugueses numa relação que funciona nos dois sentidos. O primeiro-ministro está divorciado das pessoas, mais preocupado com o controlo do calendário e com o jogo de equilíbrios políticos, e a relação funciona só de cima para baixo.

Mas temos de considerar também que Rebelo de Sousa é um jogador pouco inocente, como toda a gente sabe, mais famoso no passado pelo seu maquiavelismo cruel do que pela sua bondade desinteressada. É um tático no curto prazo, mas é sobretudo estratega no longo. Tem uma cabeça geométrica, onde por vezes o mundo não encaixa. Mas tem uma flexibilidade e uma rapidez para se adaptar a novos quadros como poucos na política portuguesa.

Vejamos: na segunda-feira, dia 16, quando a contagem ia “apenas” em 31 mortos, o Presidente publicou no seu site que faria uma comunicação ao país após a estabilização dos fogos e recordava o que tinha dito dois dias antes em Pedrógão, antes da nova tragédia. Já se sabia que António Costa ia falar nesse dia à noite. Foi um aviso. Deu a primazia ao primeiro-ministro, como é óbvio. Mas António Costa fez um discurso frio, como tinham sido frias as declarações dessa madrugada. O presidente também tinha ficado chocado com a frieza do primeiro-ministro. Costa teve a oportunidade de corrigir o tom e não o fez. E Marcelo ficou chocado uma segunda vez.

Daí que, na terça-feira, dia 17, Marcelo Rebelo de Sousa tenha deixado “chocados” os socialistas e os membros do Governo que estavam “à espera de um discurso duro”, segundo uma fonte do Público. É verdade que foi o discurso explicitamente mais duro de sempre de um Presidente sobre um primeiro-ministro. O choque político é natural. Menos natural é achar que Marcelo, por estar “informado” da futura demissão da ministra e das medidas que iam ser tomadas, ia ser mais brando. Havia mais de 100 mortos. Havia declarações totalmente desligadas da tragédia feitas por três dos principais responsáveis: primeiro-ministro, ministra da Administração Interna e secretário de Estado.

Havia um país inteiro a sentir-se abandonado pelo Estado e insultado pela insensibilidade e orgulho dos governantes. Marcelo tem fama e proveito de não ser fiável. Não é isso que tem transparecido da ação presidencial. Nestas condições extremas, o Governo esperava que Marcelo se moderasse. Mas depois de todos os avisos, depois de Costa ter obrigado a ministra a ficar (de certeza que Marcelo também não sabia disto?), era demais. Há um poder que os presidentes têm e que não vem na Constituição: o da palavra. Podem falar. Neste caso, Marcelo falou e Costa cumpriu. Os socialistas que se queixaram ao Público dão a entender que o Presidente mandou o Governo fazer o que sabia que seria feito. Que foi oportunista para diminuir o Executivo. Que passou uma “rasteira”, e a palavra não é inocente porque Marcelo fartou-se de passar rasteiras ao longo da vida. Mas o discurso não foi só isso. Foi também um sério guião sobre a decência política.

A resposta do Presidente, esta quinta-feira, às críticas dos socialistas foi simples e toda a gente percebe: “Chocado ficou o país com a tragédia vivida.” Para perceber Marcelo Rebelo de Sousa é preciso ter também em conta a única coisa que ele levou mesmo a sério toda a vida: o facto de ser um católico pós-conciliar que acha que tem uma missão a desempenhar no mundo. Sobretudo para com os mais fracos. Toda aquela aparente afetividade tem por detrás esta racionalidade (para além dos ganhos em popularidade).

O jovem que ficou chocado com o regime — em cuja regeneração ainda acreditava — a seguir às cheias de 1967 é hoje o velho chocado com a reação de António Costa aos mortos. Aqui não há esquerda nem direita. É de supor que Marcelo faria o mesmo ou pior se fosse o seu partido.

Voltando a outubro de 2015 e à Voz do Operário. Marcelo falava da intervenção do presidente para conduzir os partidos a convergências: “A pergunta é: como fazer isto? Com um presidente presidencialista? Com um presidente parlamentarista puro? A Constituição responde. Nem com um nem com outro”. Marcelo será um ou outro, conforme as circunstâncias ditarem e os primeiros-ministros deixarem.

Pode ver aqui o discurso de Marcelo Rebelo de Sousa na Voz do Operário em outubro de 2015: