Nos próximos dias, ninguém poderá dizer ao certo quem é que manda na Catalunha. 27 dias depois do referendo onde mais de 90% de eleitores disseram “Sim” à independência, mesmo que o Tribunal Constitucional tivesse dito que tudo aquilo era “proibido”, a Catalunha atingiu o pico de uma crise sem volta atrás com Madrid.

70 votos a favor, 10 contra e 2 em branco. Foi quanto bastou para o parlamento regional da Catalunha aprovar a aplicação da lei da transitoriedade (também ela considerada inconstitucional), o que equivale à declaração unilateral da independência. A partir daquele momento, dentro do plenário do parlamento catalão, tinha sido formada uma república livre e soberana.

A 631 quilómetros dali, no Senado espanhol, a interpretação era completamente diferente — e os números também. 214 votos a favor, 47 contra e uma abstenção. Foram esses os números com que, momentos depois da declaração da independência catalã, foi aprovada a aplicação do Artigo 155. É esse o artigo da Constituição espanhola de que Mariano Rajoy se vai servir para demitir todo o executivo catalão e puxar para Madrid a gestão daquela região.

“Sí”. Parlamento da Catalunha declara independência, Rajoy destitui todos e convoca eleições antecipadas

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No final da sua jornada, Carles Puigdemont falou na escadaria do parlamento regional catalão perante os deputados independentistas e os autarcas catalanistas. Garantiu que proferia “palavras que saem do coração, da emoção, mas que também são da razão e da legitimidade”.

“Como sempre aconteceu e continuará a acontecer, são as instituições e agora as pessoas que, em conjunto e de maneira inseparável, constroem um povo e uma sociedade”, explicou o presidente do governo regional da Catalunha.

Sobre a decisão do parlamento — feita por voto secreto —, Carles Puigdemont disse que foi dado “um passo largamente esperado e desejado”.

Em Madrid, o tom não foi de festa. Mariano Rajoy, que depois da votação no Senado esteve reunido em Conselho de Ministros, acusou os independentistas de fazerem um “sequestro inadmissível à maioria dos catalães”. De seguida, apoiado no Artigo 155, anunciou uma série de medidas que procuram arrasar por completo tudo o que tem sido feito pelo governo regional da Catalunha — onde se inclui a destituição de todos aqueles que o compõem. “A independência é triste, dolorosa e angustiante”, disse o Presidente de Governo de Espanha.

“Um Estado independente e soberano, de direito, democrático e social”

Foi cantando o hino catalão, “Els Segadors” (‘Os Ceifeiros’, em catalão), que os deputados independentistas celebraram a independência que tinham acabado de aprovar no seu parlamento regional. O texto deixava claro que foi constituída “a República catalã, como um Estado independente e soberano, de direito, democrático e social”, declarou “a entrada em vigor da Lei de transitoriedade jurídica” e iniciou “o processo constituinte”.

A aprovação ocorreu apenas com a presença dos deputados independentistas do Juntos Pelo Sim (coligação independentista que vai da esquerda à direita), da CUP (extrema-esquerda) e do Catalunha Sim Podemos. O Ciudadanos, o PP e os socialistas do PSC abandonaram o hemiciclo, para não participar naquele “erro espetacular”, como lhe chamou Miquel Iceta, líder do PSC — mas se tivesse votado todos contra o diploma seria na mesma aprovado. Antes disso, Daniel Carrizosa do Ciudadanos teve a oportunidade de rasgar a proposta de independência, exclamando que aquele era um papel “ilícito, imoral e antiético”, enquanto o Partido Popular, pela voz do deputado Alejandro Fernandéz, falou num “dia negro” para a democracia e atirou alfinetadas aos independentistas.

Depois de ter sido declarada a independência, os deputados que restavam no plenário do parlamento regional cantaram o hino da Catalunha, Els Segadors (Os Ceifeiros)

A votação decorreu de forma inusitada por ter sido usada uma urna, já que os independentistas pediram que o voto fosse secreto, por medo de represálias jurídicas. Anna Gabriel, da CUP, sublinhou que a decisão ia contra os princípios do seu partido. Porém, alegando existir uma “cultura repressiva”, admitiu abrir uma exceção. Tal não impediu as críticas da oposição:

“Vocês vão votar a independência e não dão a cara?”, atirou Xavier Albiol, do PP, depois de, juntamente com toda a bancada popular, pendurar bandeiras espanholas e catalãs nos assentos e antes de abandonar a sala.

O voto foi mesmo secreto e a independência foi de facto proclamada. Oriol Junqueras, vice-presidente do governo regional, prometeria pouco depois “um futuro muito melhor”, enquanto milhares de catalães assistiam em êxtase ao seu discurso pelos ecrãs gigantes montados nas ruas de Barcelona. Para muitos deles, já não estavam na capital de uma região, mas sim de um país.

Bomba atómica do 155 aplicada, eleições convocadas para dezembro

Mas em Madrid davam-se os últimos passos necessários para aplicar o Artigo 155, que visa decapitar a Generalitat e estancar a saída dos catalães. A sessão do plenário no Senado arrastou-se de manhã à tarde, devido à discussão das emendas propostas pelo PSOE. Até perto do fim, os socialistas quiseram que fosse admitida a suspensão do Artigo 155 caso na Catalunha se aprovasse a realização de eleições antecipadas sem declaração de independência — como chegou a ser opção, na quinta-feira. Porém, ao chegarem as notícias de que em Barcelona se ia declarar a independência, também o PSOE desistiu dessa ideia. “Retiramos a emenda para paralisar o 155, perante o estrondo do Juntos Pelo Sim. Esta é resposta à nossa proposta de diálogo”, declarou o senador socialista Ander Gil.

Rajoy acusa o parlamento da Catalunha de fazer um “sequestro inadmissível à maioria dos catalães”

A discussão, contudo, prolongou-se. Em causa estava o controlo da TV3, que o PSOE insistia para que se mantivesse sob a alçada do parlamento catalão. Com a aprovação da declaração de independência, o PP acelerou. Cedeu nesse ponto e apressou a votação do Artigo 155 no Senado, reunindo depois o Conselho de Ministros. Ao início da noite, o Presidente do Governo, Mariano Rajoy, surgia para fazer o anúncio da destituição de Puigdemont e seus conselheiros, bem como da convocação de eleições na Catalunha para o dia 21 de dezembro — uma quinta-feira — deste ano. De “forma pacífica e moderada”, garantiu, o Governo de Madrid avançará com todas as medidas que achar necessárias até “ser reposta a normalidade”.

Ao lado do Governo do Partido Popular está a comunidade internacional. Nenhum país até agora reconheceu a Catalunha como um Estado independente e muitos pronunciaram-se até em sentido contrário.

Foi o caso do próprio Executivo português, que falou num “ataque ao Estado de direito em Espanha” e disse não reconhecer a “declaração unilateral de independência”. Pela mesma bitola afinaram Berlim, Paris e Londres. “Ninguém na União Europeia vai reconhecer essa declaração”, sublinhou Antonio Tajani, presidente do Parlamento Europeu. António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, fez um pedido: “Procurem soluções dentro do quadro da Constituição espanhola”, apelou, pela voz do seu representante.

O presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, não tem dúvidas sobre o que se passou esta sexta-feira. “Para a UE, não mudou nada. Espanha continua a ser o nosso único interlocutor. Espero que o Governo espanhol favoreça a força do argumento e não o argumento da força”, escreveu no Twitter.

O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, também criticou o passo dado pela Catalunha. “Não vamos entrar no debate espanhol, mas não me agradaria que amanhã a União Europeia fosse composta por 95 estados”, disse o luxemburguês. “É preciso evitar as fissuras, porque já há que cheguem.”

O que acontece agora? O guião de Puigdemont e o guião Rajoy

Do lado da Catalunha, o plano para o próximo ano passa pela lei da transitoriedade. Este documento, que foi aprovado a 7 de setembro e que o Tribunal Constitucional se apressou a declarar “inconstitucional”, prevê todos os passos a serem aplicados no nascimento da nação catalã.

No horizonte dos independentistas catalães, seguem-se seis meses durante os quais os partidos políticos deverão discutir, juntamente com a sociedade civil e um órgão formado por especialistas e académicos internacionais, propostas para formar a Constituição da Catalunha. Terminado esse prazo, no final do mês de abril será dissolvido o parlamento e convocadas eleições constituintes. À nova assembleia, caberá aprovar uma proposta constitucional. A luz verde final cabe aos catalães, que serão chamados a votar num referendo. Se a proposta passar, a assembleia constituinte será dissolvida e substituída através das primeiras eleições legislativas catalãs.

O que diz a lei que funda a república soberana da Catalunha?

Esse é o sonho catalão, mas Madrid pode rapidamente cortar as pernas à Generalitat de Puigdemont. Rajoy reforçou que o Governo irá apelar ao Tribunal Constitucional para que declare a ilegalidade da declaração de independência — algo que já estava em marcha desde que os socialistas catalães, na quinta-feira, apresentaram queixa nesse mesmo tribunal.

Para além disso, estão em marcha vários processos judiciais contra Puigdemont e os membros do seu governo regional que podem culminar em detenções. A Fiscalía (correspondente ao Ministério Público português) investiga atualmente o líder catalão e os membros da presidência do parlamento pelo crime de rebelião, cujas penas podem ir dos 10 aos 25 anos de prisão efetiva. O mesmo organismo não exclui também a possibilidade de investigar os deputados, apesar de estes terem recorrido ao secretismo da urna para se proteger.

E o Tribunal Superior da Catalunha — que, ironicamente, Puigdemont quer tornar no Supremo Tribunal da república catalã — está igualmente a investigar toda a Generalitat pelos mesmos crimes. Manterá este tribunal regional a independência suficiente para avançar com estes processos? É uma das incógnitas que se coloca neste momento. Mas, mesmo que não seja o caso, a Fiscalía certamente não terá pejo em avançar e, possivelmente, ordenar, a detenção de Puigdemont. Foi isso que já fez relativamente a Jordi Cuixart e Jordi Sánchez, líderes das organizações independentistas Assembleia Nacional Catalã e Omnium Cultural, dinamizadoras da maior parte das manifestações de rua.

O líder da ANC, Jordi Sánchez, foi detido por suspeitas do crime de sedição juntamente com Jordi Cuixart, da Òmnium Cultural. Agora, os líderes políticos catalães podem conhecer o mesmo desfecho

Como se não bastasse, Madrid pretende impor as medidas que decretou com a aplicação do Artigo 155 e não terá receio de usar as suas forças policiais se assim for necessário. Não terá sido por acaso que o Presidente de Governo espanhol incluiu nas suas medidas o afastamento do chefe da polícia regional, Josep Lluís Trapero. Irá Madrid barrar a entrada de Puigdemont e companhia nos seus gabinetes ou no parlamento? Parece provável, se eles assim o tentarem.

Certo é que a todo este cenário de instabilidade e de possível ação policial soma-se a ação das ruas. As organizações independentistas começam já a marcar várias concentrações para os próximos dias e publicam nas redes sociais guias para os manifestantes que visam a “resistência pacífica”. Os catalães pró-independência prometem isso mesmo — resistência — e pretendem fazer frente às forças de Madrid, deixando antever uma situação potencialmente explosiva.

“Ataquem com a vossa foice, defensores da terra”, entoaram os deputados independentistas, que cantaram o hino da Catalunha, nesta sexta-feira histórica. Irão as ruas levar à letra as ordens do Els Segadors?

Está marcada para este domingo uma manifestação contra a independência da Catalunha