Já todos estivemos, ou ouvimos falar, em festas que começaram no melhor ambiente deste mundo e acabaram mal, com tensões, desavenças, gritaria e mesmo confrontos físicos. Há até filmes sobre o tema da “festa que não correu bem”. Mas dizer que na festa que dá título ao novo filme da inglesa Sally Potter as coisas não correm bem, é pecar por defeito. Em “A Festa”, aquilo que era para ser a alegre celebração, por um pequeno grupo de pessoas, da conquista política de uma delas – a nomeação da personagem interpretada por Kristin Scott Thomas para ministra da Saúde do governo sombra – transforma-se numa guerra civil entre amigos, num inferno de revelações chocantes, numa microdeflagração nuclear que descobre carecas, põe a nu segredos, desvenda hipocrisias e deixa calcinadas relações íntimas, laços de amizade e afectos antigos e recentes.

[Veja o “trailer” de “A Festa”]

Em pouco mais de uma hora (entre outras qualidades, “A Festa” tem ainda a de ser um filme invulgarmente curto), rodando em tempo real e a preto e branco (magnífico trabalho de fotografia do russo Alexei Rodionov), sem sair do mesmo sítio (a casa da personagem de Scott Thomas e do marido, interpretado por Timothy Spall) e evitando o conformismo do teatro filmado através de uma aproximação constantemente cinematográfica à acção, Sally Potter torna um espaço de festejo numa zona de desastre. “A Festa” é uma comédia política ferozmente negra, que pode ser vista como uma metáfora quer sobre as perplexidades e os temores colectivos causados pelo estado actual e pelo futuro das democracias liberais, quer sobre a confusão e o desatino que se vive na Grã-Bretanha após a vitória do Brexit.

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[Veja a entrevista com Sally Potter]

Só que uma coisa é clara e inegável. Pondo em cena um conjunto de personagens que é uma amostragem da elite urbana progressista, culta e bem-pensante inglesa, do professor universitário que se insurge contra a especulação financeira até ao casal de lésbicas etariamente desequilibrado, uma delas grávida de três filhos por inseminação artificial e que vê um inimigo em cada homem, passando pela activista política batida que nunca se converteu à representação democrática e continua a acreditar na “acção directa”, “A Festa” é também um festival de autoflagelação e auto-recriminação da esquerda (estamos em território do povo Labour de Jeremy Corbyn) em toda a sua presunção, arrogância e alegada superioridade moral. Festival esse que a presença de um banqueiro não vem perturbar, já que o partido dos banqueiros costuma ser aquele que lhes dê influência e lucro.

[Veja as entrevistas com Kristin Scott Thomas e Cherry Jones]

O elenco agradece a Sally Potter o presente destas personagens comica e dolorosamente humanas e deste texto carnudo de sátira e crueza, retribuindo com interpretações suculentas. Como Janet, Kristin Scott Thomas vai da euforia à devastação, esquecendo-se de uma vida inteira a pugnar pela conciliação e pelo diálogo, ao puxar de uma arma para se vingar; Timothy Spall faz um Bill pateticamente estacionado numa semi-catatonia por uma má notícia; Patricia Clarkson está fabulosa em April, a melhor amiga de Janet e debitadora imparável de comentários em arame farpado de sarcasmo; Bruno Ganz é Gottfried, o marido desta, um “hippie” jarreta que se exprime por banalidades “new age”; Cillian Murphy incarna Tom, o banqueiro que esconde mal o desespero sob fatos de marca; e Cherry Jones e Emily Mortimer fazem o casal de lésbicas aparentemente inseparável mas que fica com as costuras à mostra após os acontecimentos da noite.

[Veja a entrevista com Timothy Spall]

“A Festa” encerra com o mesmo plano com que abriu, mas que agora já faz sentido e funciona como o equivalente realista de um daqueles finais-surpresa arrasadores da série fantástica e de ficção científica “No Limiar da Realidade”, de Rod Serling. Que festa esta, meus amigos, que festa! Até a casa veio abaixo. E soterrou sete pessoas.