Este é um tema delicado, que assusta a maioria dos fabricantes de automóveis – muitos deles recusam-se até a falar disso. Mas a realidade é que os mortos têm tido, ao longo dos tempos, um papel preponderante no incremento da segurança automóvel, em defesa dos vivos. E não, não se trata da sinopse de mais um episódio da série Walking Dead, aqui na variante Driving Dead, mas sim porque em vésperas do Dia dos Finados, esta é a ocasião perfeita para recordar esse contributo (tão pouco falado).

Sabia que são utilizados cadáveres em testes, visando a segurança de quem conduz, desde 1939? À época, os investigadores da Wayne State University,em Detroit, Michigan (EUA), recorriam a um poço de elevador para determinar a resistência do corpo humano, especialmente ao nível do crânio.

Ainda há testes com humanos?

A resposta é sim. Há pelo menos seis centros em que são habituais os testes com cadáveres, um dos quais está aqui bem perto, em Espanha, o TESSA, conforme nos confirmou a especialista em segurança da Volvo Lotta Jakobsson, na sua recente deslocação a Portugal.

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Nos últimos anos, este tipo de trabalhos passou a ser realizado por empresas especializadas, na área médica, acima de tudo porque os fabricantes de automóveis não queriam ser beliscados pela imagem negativa de estarem associados à utilização de corpos humanos. Embora o resultado destes trabalhos, tal como acontece na formação de médicos e especialmente cirurgiões, permita salvar diariamente milhares de vidas.

O desenvolvimento dos crash test dummies, os bonecos utilizados nos embates realizados nos centros de investigação dos fabricantes, bem como em algumas faculdades, foi conseguido à custa do cruzamento de muitos dados, até que eles conseguissem reproduzir o comportamento do ser humano numa colisão. Trata-se de um processo moroso e complexo, pois de outra forma o preço de um destes bonecos, com cerca de 100 sensores para registar o esforço a que são submetidas as diversas partes do seu corpo durante um embate, não rondaria os 400.000€, para o moderno THOR (Test device for Human Occupant Restraint), ou 170.000€, para o modelo mais conhecido, o Hybrid III.

Muitos médicos bons, mas um brilhante

Ao longo de mais de 70 anos, muitos foram os técnicos envolvidos na criação de sistemas mais seguros, a maioria ao serviço de construtores, como aqueles que inventaram os cintos de segurança, os airbags ou os sistemas deformáveis para absorver a energia do impacto, por exemplo. Mas nenhum contribuiu para o avanço da segurança automóvel como Claude Tarrière, um médico e biomecânico francês, que esteve à frente do Departamento de Segurança da Renault e que, a pedido do Governo francês, criou as bases para estabelecer um standard em termos de segurança.

Tarrière rapidamente percebeu o que tinha escapado aos restantes colegas: dois crash tests podiam gerar o mesmo tipo de esforços nos dummies, mas provocavam lesões muito diferentes nos utilizadores. Vai daí concluiu que os bonecos não recolhiam os dados correctos e percebeu que, em certos casos, era a velocidade angular e não linear que deveria ser determinada.

Depois, a estratégia dos construtores estava errada, pois era vulgar nos anos 80 e 90 montar cintos de segurança que garantissem que o corpo dos ocupantes permaneceria no seu lugar, sem conseguir contactar com nada sólido que lhe pudesse provocar lesões. Tarrière percebeu que esse não era o caminho, pois isso provocava desacelerações muito violentas e consequentes lesões internas, como derrames no cérebro.

E, para confirmar a sua análise, o técnico francês realizou testes com cadáveres, onde era injectado um líquido no sistema circulatório para tornar evidentes esses mesmos derrames. Daqui a Tarrière criar os primeiros limitadores de esforço nos cintos de segurança, de forma a reduzir o esforço sobre o corpo dos ocupantes, foi um pequeno salto, que salvou milhares de lesões, muitas delas potencialmente fatais, além de quebras na pélvis, esterno, costelas e clavículas, sobretudo nos utilizadores mais idosos. Mais uma vez a provar como os mortos contribuem, e muito, para manter vivos os… vivos.