A polícia religiosa perdeu força (embora ainda tenha muita), membros da realeza e governantes foram detidos por corrupção (embora a prisão seja o luxuoso Ritz-Carlton) e as mulheres vão poder conduzir e assistir a espetáculos desportivos (embora com restrições). A Arábia Saudita, um dos regimes mais conservadores do mundo, está a mudar. A BBC chamou-lhe “terramoto” e, na terça-feira, um ministro saudita (sob o anonimato) admitia ao The Guardian que “isto é uma revolução“. O mesmo governante avisava que “a mensagem é que nada ficará como antes na Arábia Saudita“. Pelo meio, há uma espécie de guerra fria com o Irão. Que está cada vez mais quente.

A “revolução” tem um rosto: o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, que quer o regresso do país ao “Islão moderado.

Tudo começou em junho quando o rei Salman — que lidera a Arábia Saudita desde 2015 — afastou o sobrinho Mohamed bin Nayef da linha de sucessão e impôs o filho como o seu sucessor direto.

Mohammed bin Salman tem, desde essa altura, tomado medidas que visam aproximar os sauditas dos padrões culturais do Ocidente. No final de setembro foi anunciado que a partir de junho de 2018 as mulheres vão passar a poder conduzir no país. No mês seguinte, foi anunciado que também em 2018, as mulheres iam poder assistir a eventos desportivos, embora apenas em três estádios do país (Riade, Jeddah e Dammam ) que vão começar a ser preparados para “receber famílias”.

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O príncipe tem seguido uma estratégia de afirmação que incluiu também uma entrevista ao The Guardian, a 24 de outubro, onde defendeu que o ultra-conservadorismo do país “não é normal” e que a Arábia Saudita se deve libertar das amarras do passado:

O que aconteceu nos últimos 30 anos não é a Arábia Saudita. O que aconteceu na região nos últimos 30 anos não é o Médio Oriente. Depois da revolução iraniana em 1979, as pessoas quiseram copiar este modelo em diferentes países, um deles é a Arábia Saudita. Nós não soubemos como lidar com isso. E o problema espalhou-se por todo o mundo. Agora, é tempo de nos livrarmos disso”.

O sábado em que tudo aconteceu: Míssil, detenções e demissão

A nível interno, Mohammed bin Salman também tem operado uma verdadeira demonstração de poder. Como ministro da Defesa não deixou de afrontar o Irão (potência rival na região, de maioria xiita), tendo ordenado uma intervenção no Iémen contra as milícias xiitas. Na resposta, no último sábado, os rebeles iemenitas (houthis) disparam um míssil contra a capital saudita Riade que foi intercetado pelas forças armadas fiéis a bin Salman.

Arábia Saudita interceta míssil junto ao aeroporto de Riade

No mesmo sábado, o comité de combate à corrupção operou uma mega-operação, em que — segundo noticiou a televisão Al Arabiya — foram detidos 11 príncipes e dezenas de antigos ministros sauditas. Um dos detidos foi o príncipe milionário e Alwaleed bin Talal que é um dos homens mais ricos do Médio Oriente e tem investimentos em grandes empresas como o Twitter, a Apple, no Citigroup, na cadeia hoteleira Four Seasons ou na News Corporation de Rupert Murdoch.

Arábia Saudita. Detenções para consolidar poder do príncipe herdeiro

O comité anticorrupção tem como líder o príncipe herdeiro, Mohamed bin Salman, e o organismo tem o poder de emitir ordens de detenção e de proibição de viajar para o estrangeiro, além de poder congelar bens dos investigados e adotar outras medidas preventivas ainda antes de os casos chegarem a tribunal. Tudo isto está a ser visto como uma demonstração de força do rei Salman, mas principalmente do seu herdeiro.

Embora não seja uma informação oficial, há várias fontes locais, citadas pela BBC, que dão conta que toda esta elite está detida no hotel Ritz-Carlton, de cinco estrelas e um dos mais luxuosos de Riade. As reservas do hotel estão indisponíveis até ao final do mês e alguns hóspedes presentes na unidade hoteleira deram conta de situações estranhas, como os portões principais estarem encerrados, embora não haja uma presença policial visível no espaço.

Voltando ao sábado em que tudo aconteceu, o primeiro-ministro libanês Saad Hariri renunciou ao cargo a partir de um local desconhecido da capital saudita. Hariri alegou que foi alvo de uma tentativa de assassinato (negada pelas autoridades do país) e sugeriu interferência do Irão nessa tentativa: “Onde quer que o Irão esteja semeia a discórdia, devastação e destruição, como fica provado na interferência nos assuntos internos dos países árabes“.

De acordo com a CNN, todos episódios (aparentemente, sem relação) fazem parte de um plano ambicioso do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, que também quer alterações profundas na economia, nomeadamente na forma como se fazem negócios. O objetivo, segundo disse o próprio na entrevista que deu ao The Guardian, será dar confiança aos investidores que querem fazer negócios no país.

A afirmação de Mohammed bin Salman passa também por uma opção diplomática de afronta ao Irão. Apesar da guerra no terreno se estar a esbater no Iraque e na Síria (com a queda do ISIS) a disputa entre o Irão e Arábia Saudita pode agora passar para o Líbano, onde os dois países garantem que não interferem, mas ambos tentam influenciar as decisões de Beirute. No Líbano, as forças afetas ao Hezbollah atribuem a demissão à pressão saudita, já que não agradava a Riade a influência que os vários ministros do Hezbollah — o principal aliado do Irão no Líbano — tinham no Governo libanês.

A ‘guerra quente’ entre persas e sauditas

No Médio Oriente pós-ISIS o Irão e a Arábia Saudita vão continuar esta luta pelo poder. O Irão desempenhou um papel fundamental (ao lado dos norte-americanos e do governo iraquiano) contra o ISIS. Por outro lado, na Síria, os iranianos estão ao lado da Rússia a ajudar o regime de Bashar Al-Assad na luta contra os rebeldes (apoiados pelos EUA e pelos sauditas). A Arábia Saudita, por sua vez, está ao lado do Governo iemenita contra os rebeldes Houthi (apoiados pelo Irão).

O Irão tem um histórico mais sólido de influência na região: apoiaram os Assad (o pai Hafez e agora Bashar) desde a revolução de 1979 na Síria; apoiaram o Hezbollah desde a invasão israelita em 1982; e conseguiu ganhar força no Iraque desde que os EUA derrubaram Saddam Hussein na invasão de 2003. O Irão tem também um historial de confronto com os EUA, principalmente devido às intenções nucleares. Mas as sanções norte-americanas não conseguiram, na base, beliscar a influência iraniana, com Teerão a reforçar os laços com a Turquia e a Rússia.

Os EUA têm tentado, ao lado da Arábia Saudita e de Israel, diminuir a força do Hezbollah. Sem êxito, uma vez que é a força política mais poderosa do Líbano e ter uma capacidade militar que consegue fazer mossa a Israel. Quanto mais força tem o Hezbollah mais poder tem Teerão. Os norte-americanos, a UE e Israel, segundo lembra a CNN, vêem o Hezbollah como uma organização terrorista. Washington não perdoa a organização pelos atentados de 1983 em Beirute que mataram 241 funcionários ao serviço dos EUA nem o atentado à embaixada de Israel em Buenos Aires, em 1993, que matou 29 pessoas.

A Arábia Saudita, tal como Israel e os EUA, querem aproveitar a difícil situação política no Líbano para diminuirem o Hezbollah e, dessa forma, atingirem o Irão. O xadrez continua complicado no Médio Oriente. E vai continuar, mesmo sem ISIS. A Arábia Saudita tenta, com o fôlego do novo herdeiro, rivalizar com a elevada influência que o Irão exerce na região.