Jelena Dokic tinha apenas 16 anos quando “chocou” o mundo em 1999 ao cilindrar Martina Hingis na primeira ronda de Wimbledon. Foi a primeira e única vez que uma tenista saída do qualifier conseguiu ultrapassar a número 1 no torneio que muitos consideram ser a Meca do ténis. Mas não se ficou por aí: no ano seguinte, chegou às meias-finais na relva inglesa; em 2001, atingiu o melhor ranking de sempre, fixando-se no quarto lugar. A partir daí, ainda foi a cinco finais de provas do WTA em 2002 mas começou a eclipar-se. A ascensão da australiana nascida na antiga Jugoslávia teve um outro lado. Negro, obscuro. E que agora revela na sua autobiografia.

“Unbreakable” é a história de uma jovem que tinha o sonho de chegar ao topo do ténis mundial mas andou 13 anos, dos seis aos 19, por caminhos cruzados que quase a destruíram como pessoa.

“A minha história não é um conto de fadas, mas não quero que sintam pena por mim – eu sou mais sortuda do que a maioria”, resumiu a antiga tenista

Nascida em Osijek, mudou-se com os pais e o irmão mais novo para Sombor na altura da guerra, em 1991, antes de emigrar para a Austrália (Fairfield, uma subúrbio de Sidney) quando tinha 11 anos. Já aí jogava ténis, já aí sofria constantes abusos físicos do pai e treinador, Damir, que se autoproclamava veterano de guerra na Croácia, onde combatia ao lado dos sérvios. Mas esse não era o único dos seus problemas.

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Damir Dokic com a mulher, Liliana, e o filho mais novo, Savo, num jogo em 2000 (MARTYN HAYHOW/AFP/Getty Images)

Jovem, refugiada e sem grandes recursos financeiros, Jelena foi vítima de racismo e bullying nos primeiros tempos em solo australiano. “Volta para o lugar de onde vieste”, chegou a ouvir de outra jogadora num torneio de juniores, entre muitas outras situações onde se sentia deslocada num habitat que devia ser natural para si: os courts. Um dos poucos sítios onde conseguia fugir da verdadeira tortura a que estava submetida pelo pai.

“O meu pai batia-me e muito. Tudo começou basicamente no meu primeiro dia de ténis e continuou a partir daí, numa espiral que saiu fora do controlo. Batia-me com o cinto de cabedal, repetidamente, por uma má sessão de treino, uma derrota num jogo ou apenas por estar de mau humor. Cuspia-me na cara, puxava-me o cabelo e as orelhas, dava-me pontapés nas canelas que me deixavam marcas. E insultava-me, chamava-me nomes como ‘vadia’ ou ‘prostituta'”, revela na explosiva autobiografia lançada esta semana.

“Não era só a parte física, foi a parte emocional que mais me magoou. Quando se tem 11 ou 12 anos e se ouve aquelas coisas más… Isso foi o mais difícil para mim. Uma vez disse-me que era uma desgraça e uma vergonha, que não podia voltar para casa. Não tinha para onde ir e tive de encontrar um sítio para passar a noite”, conta no livro, recordando o episódio após a derrota com Lindsay Davenport na meia-final de Wimbledon de 2000

Foi também em 2000 que a violência do pai e treinador teve o seu episódio mais dramático, no seguimento de um desaire num torneio no Canadá. “Bateu-me e desmaiei. Levei um golpe na cabeça, caí e enquanto estava no chão foi-me dando pontapés. Num deles, que passou perto da minha orelha, a minha visão desapareceu”, lembra.

Os maus tratos arrastaram-se durante 13 anos, até que, aos 19, saiu de casa e cortou relações com o pai, que entretanto já tinha sido protagonista de episódios de mau comportamento em torneios, nomeadamente em Wimbledon, o que motivou repreensões por mau comportamento e mesmo suspensões. Mais tarde, Damir chegou a ser preso mas por ter ameaçado o embaixador australiano na Sérvia com uma granada na mão.

O Telegraph (que publicou excertos do livro) tentou chegar à fala com o pai de Jelena Dokic – o que não conseguiu, desta vez –, mas recuperou algumas frases deste ao jornal Vecernje Novosti, onde abordou a relação com a filha. “Se tivesse sido um pouco mais agressivo com ela, isso tinha acontecido para o bem dela. Quando era mais novo, os meus pais batiam-me e eu agradeço-lhes por isso, porque ajudou-me a tornar a pessoa certa. De qualquer forma, há algum pai que alguma vez não tenha batido no filho para o seu bem?”, comentou.

Neste cenário de terror, Jelena Dokic, hoje comentadora televisiva de ténis a combater um problema da tiroide com 34 anos, comenta que aquilo que lhe meteu mais pena ainda foi ter anuído a trocar da nacionalidade australiana para a sérvia e montenegrina, antes de “desfazer” essa mudança quatro anos depois, em 2006.

“Não penso que ele consiga perceber todas as coisas que me fez. Não penso que tenha assumido a responsabilidade. É complicado encontrar um meio termo, é como ele quer ou como ele quer. Mas não o odeio”, diz sobre o pai.