Se alguém precisasse de uma introdução à personagem Father John Misty – que não coincide obrigatoriamente com o compositor – bastava o que aconteceu entre o regresso para o encore e a primeira canção do concerto de segunda à noite em Lisboa, quando ele resolveu ler um cartaz empunhado por uma fã na primeira fila – e quando chegou ao fim sabíamos exactamente o que ia acontecer: “É a segunda vez que te vejo. Dá-me a setlist ou deixa-me tocar na tua barba”. Misty desceu do palco, deixou moça tocar-lhe na barba, para gáudio do público e, como bom entertainer, aproveitou o momento, disparando uma série de piadas: “Vocês nem sequer querem saber da música, pois não? São um grupo de fetichistas de barba. Vão para casa e ponham faixas áudio no Youtube, só com o som de homens a cofiar a barba e adormecem assim”.

E já que estamos a falar de introduções, o encore poderia muito bem servir de exemplo das qualidades e defeitos da escrita deste pequeno deus ex-machina dos apetites de muita gente: uma estupenda “Real love, baby” (sensualíssima), uma aborrecida “So I’m growing old on Magic Mountain” e aquela maravilhosa descarga final de electricidade que foi “The ideal husband”. E agora com licença, vou fazer um valente seguro de saúde porque ousei dizer algo sobre Father John Misty que não um elogio. Perdoem, não é de propósito, não quero aborrecer nem provocar – é sincero.

Sei que querem ler sobre o concerto – e já lá vamos – mas tenho de confessar uma coisa antes: não adiro por completo a esta personagem. Já me perguntei muitas vezes porquê: será da voz, indago noite fora (porque basicamente não tenho nada para fazer e conheço demasiados streams ilegais de desporto, que me mantêm acordado); ele tem uma projecção de voz mas não um daqueles vozeirões à Tim Buckley. Será da tanga? Raras vezes houve um músico com tanta tanga como Father John Misty.

E, reparem (sim, eu sei que houve um concerto, tenham calma, gentes da internet): eu gosto de palhaços. Há alguma coisa melhor que ler uma entrevista de David Berman, em que ele destrói a sua imagem a cada pergunta e leva a ideia de (mini-)estrela rock à irrisão? Ou ver Louis CK gozar consigo mesmo, frase que por estes dias é perigosa? Mas em qualquer um destes tipos é identificável uma qualquer dor, um mal-estar que eles (claramente) não dominam. E apesar das histórias de caos que Misty conta (a péssima relação com os pais, o excesso narcótico) nunca me parece que ele não esteja no mais completo domínio das suas emoções e da persona que quer fazer passar.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Não há qualquer problema em ser-se farsola, note-se: o tipo que teatraliza uma emoção, tornando-se excessiva, pode muito bem senti-la – tanto até que não sabe lidar com ela na sua exacta medida. Misty, though, Misty tem demasiado a seu favor: tem o rosto, tem a pinta, tem os moves de dança, as camisas, as botas, o cabelo, a barba, as canções (ou pelo menos um punhado delas). E muito honesta e pateticamente concluo que é isso que me faz não aderir por completo: ele é demasiado bonito e muito honestamente um tipo olha para ele e sente que é concorrência desleal para com os restantes homens. (Uma vez vi uma mulher pesquisar no Google “Father John Moisty”. “Foi por engano”, disse ela.) Em suma: tenho ciúmes.

Mas que dizer quando um tipo abre um concerto com uma “Pure comedy” que a meio, quando entra a banda toda (e eram mais seis músicos), se torna grandiosa, fazendo-se seguir de uma óptima versão de “Total entertainment forever” e, sem parar, de “Things it would been helpful to know before the revolution”, cheia de pompa, em crescendo até à explosão? E que nisto põe a cantar e a bater palmas um Coliseu cheio, cuja amplitude de idades ia dos cinco ou seis aos sessenta? Desistir de não gostar, claro. (Mas gostar de forma comedida e muito máscula, entenda-se.)

Foi um belíssimo início de concerto que incluiu uma óptima versão desse tratado de cowboiismo que é “Nancy from now on” (um vídeo que, curiosamente, está bloqueado em todos os computadores cá de casa, não sei como é que aconteceu) e neste momento eu estaria aqui a pedir redenção por algures no passado ter sido menos simpático com o senhor – se não fosse uma certa modorra nas baladas. Calma, gente, calma: gostai à vontade das baladas; mas na minha humildíssima opinião o senhor Misty está tão melhor quanto mistura o rock a folk clássicas (à maneira da The Band, que claramente ouviu com muita atenção), ou quando as canções (mesmo as baladas) explodem, cheias de si mesmas, arrogantes, maiores que o mundo. Que posso dizer? “When the God of love returns there’ll be hell to pay” aborreceu-me. (Espero ter acertado no nome da canção, senão a internet vai chacinar-me. Perdoem, mas é tarde, estou cansado, acabaram-se-me os cigarros e as Oreos e o PC já foi duas vezes abaixo.)

Como uma equipa de futebol que quer garantir um bom resultado, Misty e os seus místicos subiram de novo de intensidade, em particular com “Bored in the USA” (cuja letra é particularmente inteligente, outra qualidade deste marmanjo que, não sei se já vos disse, me irrita um bocado). Lá para o fim houve uma óptima “I’m writing a novel” e, dois temas à frente, “I love you, honeybear”, antes da apoteose no encore.

À saída, num pequeno exercício sociológico, resolvi perguntar a algumas pessoas o que haviam achado. Pessoa A, heterossexual do sexo feminino: “Foi como se me tivesse passado um comboio por cima”. Pessoa B, heterossexual do sexo feminino: “É lindo, ele”. Pessoa C, heterossexual do sexo masculino: “Foi fixe”.

Foi menos espalhafatoso e mais competente do que estava à espera – o que me permitiu deixar de implicar com este rapaz que, estou certo, dentro de vinte anos estará de regresso com um disco só de guitarra acústica, gordo e feio, em que narra as suas desgraças. Espero eu, que sou uma pessoa sem maldade.