Onze anos é uma vida inteira. Pode até nem ser mas às vezes parece. Esse é o tempo que passou desde Serviço Público (2006), segundo e último álbum de Valete até à data, depois da estreia em 2002 com Educação Visual, mas o rapper não esteve parado. Durante esse período colaborou com vários músicos, deu concertos, participou em vários projetos, como Língua Franca, com Capicua e os brasileiros Emicida e Rael, que editaram um álbum neste ano. No início de junho deu sinais de que algo estaria a mudar: colocou dois temas cá fora, o single de aviso do “comeback”, “Rap Consciente” e “Poder”, ambos produções do sevilhano Baghira, com quem continua a trabalhar em novos temas.

Para já esses são os únicos dois temas finalizados. No início de 2017, Valete quis recomeçar do zero, colocar para trás as ideias que tinha para o terceiro álbum, prometido em 2009. Provavelmente serão os únicos temas novos que se ouvirão no concerto que dará esta sexta-feira no auditório do Cine-Teatro Capitólio (23h50), concerto integrado no Vodafone Mexefest. Mas há uma nova atitude:

“Ainda estou a finalizar alguns temas. Quando lancei os dois temas em junho a ideia era começar do zero. É esse sentimento que quero levar para o Mexefest: uma vida nova. Vou celebrar o passado, mostrar as coisas antigas, mas vou fazê-lo com algo novo, para o público perceber o que vai ser o Valete nos próximos tempos.”

Estará em palco com Bónus, habitual companheiro nesta luta, mas durante a entrevista deixou no ar a possibilidade de ter alguns convidados surpresa.

[“Rap Consciente”:]

Estamos no estúdio Big Bit nas Laranjeiras. Uma espécie de segunda casa para Valete. Foi neste estúdio, com as pessoas que lá trabalham, que gravou os seus dois álbuns: “Venho para aqui há treze anos. Eles antes tinham um estúdio em Algés, que foi onde gravei o meu primeiro álbum, em 2001, e mudaram-se para aqui em 2004, e depois gravei aqui o meu segundo álbum. Muita gente do hip hop português gravou aqui, ainda muita gente grava porque há dois, três técnicos muito bons. O pessoal tem uma relação muito forte com este estúdio.”

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Valete confessa que tem passado muito tempo por ali. O terceiro álbum está em gestação, mas tal como já tinha revelado em junho, quando lançou dois novos temas, o seu modus operandi passou a ser diferente:

“Não lancei nada oficial durante muito tempo. O terceiro álbum estava para sair em 2009 e, entretanto, passaram-se muitos anos… e decidi entrar num registo que tem mais a ver com esta era. As músicas que estou a fazer, neste momento, quero lançá-las já. Nesta era isso faz mais sentido, marcares a tua presença com singles, principalmente quando podes fazer videoclips a baixo custo. Dá-me muito gozo fazer isto, porque há músicas que tu fazes, com temáticas urgentes, que não podem estar à espera da finalização do álbum para serem lançadas. Queres dizer algo naquela altura e queres lançar logo. Há um sentido febril nisso que gosto muito”.

Slow J aparece no vídeo de “Rap Consciente”, foi também responsável pela mistura e por alguma co-produção do tema. Valete quer continuar a relação com Slow J: “Ele trabalhou neste estúdio e construímos uma amizade muito forte. Durante um ano ele foi o meu técnico de som. E foi muito bonito, vi o Slow J a crescer, assisti a todas as inquietações que tinha na altura e que, se calhar, ainda tem. E gosto do artista em que ele se tornou. Chegou aqui muito cru e gostei do caminho que ele fez, do que ele é hoje. Está a crescer bem, tranquilamente, o que é fantástico porque ele faz parte de uma geração apressada. Muito apressada. Mas ele tem o ritmo certo e a atitude ideal para estar aqui muitos anos.”

Deseja colaborar com alguns dos seus suspeitos do costume, como Sam The Kid — de quem tem muitos instrumentais já feitos para o álbum que deveria ter saído em 2009 –, Capicua, continuar a trabalhar com Baghira e colaborar com novos produtores e rappers do universo português, como Here’s Johnny, Lhast, Gson (dos Wet Bed Gang) e insistir com amigos de longa data para finalmente fazerem algo juntos: “Gostaria de ter no disco uma produção dos Orelha Negra. Acho que eles nunca fizeram isso e sei que é difícil convencê-los, mas estou a pressioná-los para o fazerem”.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Já agora: porquê o silêncio, porquê tanto tempo sem editar? “Aprendi muito nestes anos e tive algumas lições difíceis, para um gajo como eu, que é essencialmente um letrista. Antes de ser músico, sou um letrista, e aprendi que o que faço é essencialmente música. Mesmo que queiras fazer uma coisa simples, minimalista, tudo tem de ser bem encaixado para as pessoas sentirem as tuas emoções, o que queres passar, sem que a letra sofra com isso. Antigamente fazia algumas coisas muito rudimentares, que se tornavam um pouco cansativas, até desgastantes. A forma como produzes, as dinâmicas que crias, são importantes e foi isso que estive a aprender. No ‘Rap Consciente’ não há samples, é tudo tocado, e como a música tem várias camadas, isso permite-me também ter várias dinâmicas. Não me obrigam a suportar uma letra que quer sempre brilhar, ou que brilhe mais do que a música: o instrumental também tem de ser bom para tudo estar bem implementado. Ainda estou a aprender e estou a fazer cada vez melhor.”

“Precisava de aprender muito. Até na forma como escrevo. Coisas simples, por vezes. Imagina que queres falar da relação que tens com a tua mulher, vais ler alguma coisa sobre emancipação intelectual das mulheres em 2017 e já vais escrever a tua letra de outra forma, já não vais poder exigir para a tua relação a mesma relação que o teu pai tinha com a tua mãe. São coisas simples, mas quando tens essa informação, a abordagem que fazes deixa de ser tão superficial. Precisava desse tempo para isso tudo, para estar com mais bagagem musical e intelectual.”

Há humildade nas palavras e no tom de Valete. Por vezes descreve a sua música do passado como “atabalhoada” ou uma “compilação de erros” e quando é confrontado com isso responde: “Não podes estar a mentir. A relação com as coisas antigas é sempre difícil, pelo menos para mim. Há ali uma fase na vida, normalmente entre os 20 e os 30, que é uma fase essencialmente para aprender, para errar e para aprender. Não vais ser um mestre com 20 anos. Fiz o primeiro álbum com 20, 21, e o segundo com 24, 25, é impossível seres um mestre com essa idade. Quando fiz o primeiro álbum só tinha feito duas canções na vida. Os álbuns serviram para aprender, para errar muito, receber críticas. As críticas ajudam. Agora percebo que posso melhorar, fazer algo de diferente, e sair da presunção de que podemos fazer tudo sabendo muito pouco. Estou satisfeito por chegar a esta idade e estar a fazer um álbum com este conhecimento todo, sei que vou fazer algo competente. Acredito mesmo nisso, mas no passado era impossível fazer algo com este nível.”

[“Poder”:]

“Rap Consciente” lança uma série de ideias para o futuro. Assinala o regresso do artista e é um ponto de reflexão para a sua carreira e para o que se passa à sua volta. O hip hop, e o hip hop português, mudou muito desde Serviço Público. Valete expressa isso afincadamente e desenvolve o que quis dizer quando lançou a bomba em junho:

“O hip hop está a perder a única coisa que não podia perder, que é a matriz contracultura. O hip hop está a substituir a cultura pop e com isso está a deixar de ser um movimento progressista e isso, para mim, é o que mais me dói. É o problema da ditadura das visualizações, um miúdo começa a fazer rap e condiciona o que faz com o que se passa à sua volta: olha para os números e quer reproduzir isso. Se não consegue, desiste ou segue o caminho das que têm muitas visualizações. A mensagem sofre com isso e está a perder-se diversidade. Quando eu comecei éramos muito menos e havia mais diversidade. O Boss AC não era igual aos Dealema, os Dealema não eram iguais ao Sam The Kid, e o Sam The Kid não era igual aos Micro. Podíamos ter todos a mesma matriz, filosofia, até a postura, mas a estética era diferente. E agora está tudo igual, é pena.”

Valete está bem vivo. Nos anos de maior silêncio nunca deixou de ser um nome presente no panorama do hip hop português. Reconhece o valor que lhe deram e que ainda hoje lhe dão, nas suas palavras “é bonito”. “Bonito” é algo que lhe sai de vez em quando. Faz parte do amadurecer, de querer que o seu trabalho fique próximo da ambição que alimentou ao longo destes anos: “Não quero ficar eternamente nesta coisa de lançar um disco. Mas o disco tem mesmo de sair bonito, não vou apressar.” É para dar tudo: “Se é para morrer, morremos de pé”, ouve-se no início e no fim de “Rap Consciente”.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR