A primeira imagem que me vem à cabeça é o Pedro a rir-se. Depois rio-me eu e quem estiver por perto, até que nos desmanchamos numa gargalhada.

No último ano, não raras vezes, essa gargalhada foi interrompida pela tosse. Insistente, sufocante, lembrete indesejado de que, ao contrário do que parecia, nem tudo estava bem. O Pedro recompunha-se, menorizava “o bicho”, como lhe chamava, e prosseguia com mais uma história. Um copo, jornais, revistas e Smint verdes sempre à mão, vício que lhe ficara de quando deixou de fumar, há mais de 10 anos.

Na verdade, a primeira imagem que tenho do Pedro deve ter 20 anos. Ele a apresentar o “Falatório” na RTP2 e eu uma miúda a vê-lo naquilo que ele fazia melhor, conversar.

Nessa altura, o Pedro era uma referência distante. Um nome e uma imagem. Os óculos e o gel no cabelo, as camisas de cores e as gravatas com motivos. Tão anos 90. (Costumávamos rir-nos muito com isso.) O Pedro era também o DNA, o suplemento do Diário de Notícias, que eu lia, não por ser assinado por ele, mas porque era fresco e guloso. E eu pensava que um dia talvez viesse a ser jornalista e talvez pudesse escrever qualquer coisa como as que vinham naquelas páginas.

O que não sonhava sequer era que um dia viria a conhecer o Pedro Rolo Duarte. Mais: a trabalhar com ele. E que no caminho ficaríamos amigos. Não eu e o senhor que aparecia na televisão, mas eu e o Pedro.

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Nestes momentos de dor, em que nos passam tantas imagens pela cabeça e mísseis pelo coração, parece que as palavras são sempre curtas e excessivas. Para quem ganha a vida a escrever, entre outras coisas, obituários, não apetece despedirmo-nos assim dos amigos. Parece, ainda por cima, um gesto inútil. Eles já não estão cá para ler. Mas depois há esta coisa da percepção. Da imagem que guardamos de alguém. E dos que ficam por cá, a tentar fazer sentido disto tudo. Incluindo nós próprios.

A imagem mediática que eu tinha do Pedro nunca colou com o Pedro real que conheci. Já nos tínhamos cruzado no jornal i, onde ele fez a revista “Nós”, mas só quando o Manuel Falcão nos desafiou para fazermos na RTP3 um programa sobre média e tendências é que trabalhámos realmente juntos. Lembro-me de me sentir intimidada e de lho ter dito, ao que ele terá respondido com uma piada ou um galanteio, dois registos que alternava especialmente bem. E foi quanto bastou.

A cada programa, juntava-se um atributo à lista. À cabeça, a generosidade e o sentido de humor. Tão doce como sarcástico. A sinceridade, que ele não conseguia evitar, e que tantos sarilhos nos valeu na altura de decidir convidados. “Esse não pode ser, porque” “Essa também não, porque”. E lá vinha uma história, quase sempre hilariante. As histórias, dezenas, centenas, que ele desfiava sem esforço, com uma memória tão prodigiosa quanto particular nos seus esquecimentos, e que consubstanciaram tantas “reuniões rápidas” em horas de pura galhofa e prazer. As vezes que as maquilhadoras, exasperadas, nos mandaram calar, porque ninguém consegue mascarar um rosto que não pára de se rir.

Uma dessas histórias, repetida uma vez que lhe fiz uma entrevista mais formal, versava a forma como, no arranque dos anos 90, numa noite de copos, o Miguel Esteves Cardoso, desesperado com o caos na revista Kapa, lhe pedira para ir pôr ordem na casa. “E obrigou-me a assinar no balcão do Frágil um contrato num cartão amarelo que ele tinha no bolso. Dizia: ‘Pedro Rolo Duarte. Função: editor-geral. A entrar: logo que puder. Ordenado: não sei quanto.’”

Parece que estou a ouvi-lo.

Sim, o Pedro também tinha feito parte da Kapa, essa euforia irrepetível. E antes disso do Se7e, e do Independente. E mais tarde da Visão. Isto, sem falar da rádio. O Pedro trabalhava desde os 17 ou 18 anos, adorava contar histórias e coincidira apanhar a onda perfeita do jornalismo português. Mas como todas as ondas também esta se desfez. E, não sei se também por isso, quando tive a felicidade de me cruzar com ele (e por isso estarei para sempre agradecida ao Manel), o Pedro era o tipo mais disponível que eu podia imaginar. Ele próprio falava sobre isso. Do quão difíceis que tinham sido os anos pós DN, do choque, da forma como tinha sido obrigado a reimaginar-se e a reconstruir-se. Do banho de humildade. Sentira-se maltratado, às vezes ainda sentia, às vezes com razão, amargara um pouco, mas estava a fazer as pazes com a vida. E na vida, percebera, o que realmente importava eram poucas coisas: a amizade, de que ele era devoto, o amor, que ele nunca deixou de procurar, e um bom cozido à portuguesa.

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O Pedro nunca me ensinou a fazer perguntas, mas ensinou-me a ouvir. O Pedro nunca me ensinou a ler um teleponto, até porque não o usava, mas ensinou-me a não me preocupar demasiado com o que dizia. O Pedro nunca me deu conselhos não solicitados, mas quando lhos pedia era tão sólido a falar de trabalho e bitoques como empático a discorrer sobre filhos e separações. E depois dizíamos uma parvoíce qualquer e riamo-nos. Naquele estúdio onde tantas vezes nos sentimos ambos desconfortáveis, eu com medo de falhar, ele um homem da rádio, o Pedro deu-me uma lição final sobre coragem.

Penso que o último programa que gravámos juntos terá sido em Dezembro do ano passado, com o Ricardo Araújo Pereira. O Pedro já mal respirava. Quanto mais falar. Mas insistiu em cumprir. E, claro, cumpriu bem. Quem não o visse, cada vez mais magro, frágil e cansado (muitas vezes entre tratamentos que o deixavam, como ele gostava de dizer, “fluorescente”) não daria por nada. Seria internado dias depois. A primeira de várias intervenções. Entretanto, o programa de televisão acabaria, mas ele continuaria na rádio, no seu Hotel Babilónia, casa que partilhava com o João Gobern e a que regressou assim que pôde. O eufemismo “profissional liberal” terá tido qualquer coisa a ver com isto, mas havia nesta dignidade qualquer coisa de estratégia de sobrevivência. E o Pedro quis viver até ao fim.

Há menos de dois meses reunimos a equipa para jantar na Osteria. Depois de vários tratamentos, incluindo uma operação de alto risco, o Pedro tinha o prazer de nos anunciar que estava limpo. Vencera o bicho. Acabava de se transformar ele próprio numa daquelas histórias inspiradoras que contamos aos amigos. Sentimo-nos todos felizes. Brindámos, obrigámo-lo a comer almôndegas com puré de batata e demorámos mais de uma hora a despedirmo-nos à porta de casa dele, já de madrugada.

As semanas seguintes já incluíram planos de futuro. Livros, revistas. Apesar dos tratamentos, apesar da dor, apesar de tudo, o Pedro passara os últimos meses a escrever. Uma vez, enquanto tomávamos café, comentou que tinha pena de nunca ter tirado um curso superior. Ele, que era mais culto e bem pensante do que 99,9 por cento da população portuguesa. E também por isso o filho, o António Maria, era um orgulho. Porque, além de educado e gentil e cavalheiro como o pai, era um estudante de excepção.

Até que há um mês tudo se desmoronou. Novo convite para jantar, uma resposta que tardou mais – e o Pedro respondia sempre – e o balde de água fria. Voltara a ser internado. “… agora foi no peritoneu que o bicho neto de moura decidiu investir…”.

O mais difícil de suportar é a saudade. O Pedro vai fazer muita falta, sim, mas, perdoem-me os que dizem o contrário, não é pelo que ainda tinha a dar ao jornalismo e ao mundo da comunicação em geral. O Pedro vai fazer falta à mesa do café ou do jantar, do outro lado da linha do telefone ou de uma simples mensagem, a dizer “Bebam por mim, eu respiro na varanda e tenho saudades mil…”

Saudades mil, meu querido Pedro.

Joana Stichini Vilela é jornalista e escritora. Apresentou, com Pedro Rolo Duarte, o programa “Central Parque”, na RTP3