Estão a ver canções como “Big Time Sensuality”, “Venus As Boy” ou “Army of Me”? O novo disco de Björk é completamente diferente. Björk nunca foi um estrela pop convencional. Nem quando estava nos Sugarcubes e o mundo descobria a sua figura de duende com voz estridente e sibilante, nem quando lançou Debut, Post ou Homogenic, os discos com que conseguiu maior consenso. Na verdade, se olharmos para a cronologia, pelo menos desde 2001, ano em que lançou Vespertine, que Björk parece menos interessada em fazer canções pop do que em experimentar com voz, texturas e possibilidades sónicas, conceitos e imagens (Volta, de 2007, terá sido o último disco em que se aproximou do que foi nos anos 90 mas não se pode dizer que tenha facilitado).

Dela espera-se tudo, até porque foi com ela (e outros como Timbaland ou Animal Collective) que, no início deste século, nos habituámos a ouvir pop “estranha”, com ruídos, dissonâncias e ritmos fora do baralho, mas talvez não se esperasse que Utopia fosse assim. No novo disco ouvem-se flautas, pássaros, coros celestiais e ruído industrial, as fotos mostram Björk em avatar híbrido mulher-homem-planta-animal-cerâmica-kitsch-brinquedo-fetichista (já lhe chamaram avant drag, é uma colaboração com a berlinense Hungry, drag queen com estatuto de verdadeira estrela, extraordinária maquilhadora e criadora de personagens entre o animal, o botânico e o humano).

“Utopia”, de Björk (One Little Indian)

Björk excedeu-se no seu novo imaginário, embora haja uma linha de continuidade em toda a sua obra — e há muito tempo que ela é um personagem, até vários. Utopia faz parte de um processo de transformação, ou transmutação, em que Björk quer celebrar a vida e a natureza, o amor e sexo, transcender o domínio do patriarcado, dar vida a uma fantasia telúrico-tecnológica com fundamentos políticos. É também, e segundo a própria, o “disco do Tinder”, não porque ela esteja efectivamente no Tinder (pelo menos de forma declarada) mas porque, está interessada na forma como estas apps, e de um modo geral a tecnologia, interferem com as relações humanas e porque ela própria, depois das agruras do divórcio, está novamente a interessar-se pelas regras da atração e jogos românticos. O disco fala de facto de excitações, toques, olhares e hesitações, sms febris, nerds que se apaixonam trocando mp3, cadeias de negas para compensar frustrações, beijos que acendem o corpo todo, etc.

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Se Vulnicura era um disco negro de separação (de amputação e feridas abertas, mesmo) que expunha toda a dor e sangue da separação do artista Mathew Barney e consequentes ressentimentos, Utopia é um disco que procura a luz e o amor num sentido físico e metafísico. A fase negra já passou, ainda que, aparentemente, tenha acontecido mais cedo a Björk do que aos fãs que sofreram com ela, ou até mais do que ela. Numa entrevista recente ao britânico The Guardian, Björk fala dos concertos finais da digressão no Carnegie Hall, em Nova Iorque:

“Toda a gente que já tinha tido um desgosto de amor estava lá e contava-me as suas histórias . Foi muito bonito e genuíno (…) mas depois do primeiro concerto quase me senti culpada. Porque toda a gente na sala estava a chorar e eu não. Eu e o Alejandro [Ghersi, mas conhecido como Arca] estávamos a beber champanhe no backstage e a dizer para a próxima vamos divertir-nos, OK?”.

[“The Gate”:]

Utopia não é nenhuma rave, não se dança, não é esfuziante, mas pode ser uma festa numa floresta imaginária, algures numa ilha de fantasia onde todas as possibilidades se colocam, incluindo a reinvenção pessoal e colectiva. Não deve, no entanto, ser encarado com ligeireza. Apesar do título e de todo exotismo dos conceitos visual e musical, não é um disco fácil, as suas 14 canções ocupam mais de uma hora e a mais imediata de todas é a última. Ainda assim, e também por causa disso, é um disco desafiante.

Björk e Arca, Alejandro Ghersin, produtor venezuelano com base em Nova Iorque, conhecido pelos beats electrónicos escuros e dramáticos (que já tinha trabalhado em Vulnicura e agora divide os créditos do novo Utopia), parecem de facto feitos um para o outro. A teatralidade e vontade de experimentar e questionar de ambos sustenta esta utopia sonicamente luxuriante, onde a voz de Björk se multiplica em melodias sobrepostas, flautas e coros celestiais são acompanhados por sons de pássaros e rituais xamânicos em florestas da América do Sul, há ruídos de baleias e máquinas, harpa e percussão, beats arrastados e electrónica suja, ambientes oníricos que sofrem sobressaltos.

Utopia é um disco de detalhes, meticuloso nos pormenores, tem momentos em que lembra folk celta sob manto psicadélico, outras é quase spoken word sobre fundo musical apocalíptico. Björk assume a metáfora da ilha, ou território novo, e diz que Utopia pode ser dividido em 3 partes: a descoberta da ilha, viver na ilha e sobreviver aos tempos difíceis. É tudo menos um disco convencional, como seria natural tratando-se de um disco que questiona noções de género e identidade.

[“Blissing Me”:]

Björk sempre foi bastante vocal na expressão do seu feminismo, e mais do que falar, fez sempre questão de manter a sua autonomia criativa, correndo riscos e assumindo o controlo da sua arte, sem cedências. Foi isso que fez dela uma das artistas mais influentes das últimas décadas. Isso permanece, mas Björk quer agora agitar activamente a estrutura, combater as regras de um mundo dominado por homens — está por todo o disco, nomeadamente em “Sue Me”, a canção que ainda fala de Barney e evoca o processo que ele moveu alegando que Björk não o deixava ver a filha.

“He took it from his father
Who took it from his father
Who took it from his father
Let’s break this curse
So it won’t fall on our daughter
And her daughter
And her daughter
Won’t let this sink into her DNA”

Neste sentido Björk faz parte de um movimento maior. Liga-se não apenas à luta pela igualdade, reclamando voz activa e denunciando abusos (Björk acusou o realizador Lars Von Trier de abuso — não de natureza sexual — durante a rodagem de “Dancer in The Dark”) mas também às discussões de género e à recusa de uma catalogação binária e conformista da sexualidade, de resto o mesmo tipo de território em que se movimenta Arca. Se quisermos ser pomposos, até podemos dizer que Utopia é uma fantasia sci-fi eco-feminista ou transgénero, mas em termos mais simples, é um disco complexo de renascimento e reinvenção — a de Björk, enquanto mulher e artista de 52 anos, mas também dos conceitos de canção e de cultura pop no sec XXI. Nunca poderia ser um disco fácil, mas tem momentos em que é incrivelmente fascinante.