“I Love You, Daddy” foi apresentado pela primeira vez em Portugal no Lisbon & Sintra Film Festival e desde que os rumores em volta de Louis C.K. se tornaram verdade que a sua estreia comercial tem sido cancelada ou adiada um pouco por todo o lado. A estreia em Portugal, entretanto, foi confirmada para 30 de novembro. Os espectadores na sala aplaudiram no final, riram-se com algum desconforto ao longo de todo o filme (mas isso, para que fique claro, também poderia ter acontecido sem as luzes do escândalo), por vezes soltavam-se uns comentários engraçadinhos e um homem ao meu lado ressonou durante quase toda a projeção. Pode ler-se como se quiser, mas na realidade isto tem muito de normal num festival de cinema. Ou de uma sala de cinema bem composta.

“I Love You, Daddy” trabalha muito os lugares escuros da moral humana e da sua natureza, algo que não é estranho a quem conhece outros trabalhos de Louis C.K., seja a sua stand-up ou as séries “Louie” e “Horace And Pete”. Aqui é a relação entre Glen (Louis C.K.) e China (Chloë Grace Moretz) que está no centro, um pai que passa a viver com a filha adolescente, prestes a fazer 18 anos, e que tem de lidar com essa situação pesada de educar uma mulher num mundo de homens. Torna-se mais pessoal porque envolve o mundo do espectáculo e as questões de poder, de abuso de poder masculino.

[o trailer de “I Love You, Daddy”:]

Numa festa em casa de Grace Cullen (Rose Byrne), uma atriz que quer entrar numa nova série que Glen está a escrever, China conhece um realizador e argumentista de 68 anos, Leslie Goodwin (John Malkovich), o ídolo do pai e alguém com a aura de pervertido anexada a rumores de abuso sexual de menores. China e Leslie tornam-se amigos, passam muito tempo juntos (inclusive férias) e começa-se a desenvolver a temática principal de “I Love You, Daddy”, as fronteiras entre o desejo masculino e feminino e a tentativa de compreensão desses limites por Glen, enquanto homem e pai.

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Há um momento em que Louis C.K., o próprio e não a sua personagem Glen, tenta resolver isso como habitualmente faz noutros trabalhos seus, numa conversa entre Glen e Grace, criando imensas camadas de interrogações no conflito entre moral e natureza humana e isso sai-lhe furado. E não é – ou “e não é só” – pelas acusações que surgiram sobre Louis C.K., mas também porque nesse momento “I Love You, Daddy” é um filme que deixou de encontrar soluções e de se resolver a si mesmo.

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É uma fórmula que resulta em “Louie” – e que bem que resulta – mas que falha em filme. A segunda metade é feita de pequenos episódios que criam situações de interrogações e que procuram ali mesmo a resposta. Em “Louie”, C.K. conseguia fazer de uma cena de cinco ou dez minutos puro cinema, onde arrumava temas comuns da vida e da ficção com uma mestria raramente vista. Era, e é, admirável como o fez. Em “I Love You, Daddy” acontece o inverso, transforma o seu filme em televisão, momentos que caberiam em “Louie” mas que no contexto de filme, principalmente nesta abordagem algo Woody Allen de “Manhattan” (seja pelo preto e branco ou como algumas temáticas se tocam), perdem a síntese, a clarividência e a razão.

Talvez perder a razão seja propositado. Talvez Louis C.K. soubesse que os rumores, que desmentiu durante anos, um dia se tornariam verdade: afinal rodou “I Love You, Daddy” em junho passado, em segredo, e passado uns meses já estava a passar em festivais de cinema. A ausência de uma forma concreta na segunda metade do filme talvez se justifique pela impossibilidade do próprio em resolver a moral da sua moral.

O segundo episódio da quinta temporada de “Louie” começa com o protagonista nas compras com as filhas e, de repente, tem uma vontade enorme de ir à casa de banho:

https://www.youtube.com/watch?v=7MCj4YeUEik

É uma situação exasperante, uma necessidade fisiológica surge sem aviso e não há solução à vista senão fazer tudo acontecer nas calças. É um momento de grande humilhação. Só de imaginar a situação surgem logo suores frios. Está-se com as filhas na rua e de repente elas veem uma das suas grandes referências a sucumbir a algo que deveria controlar. Afinal, é isso que os adultos, os pais, fazem: representam. Não é só a masculinidade – neste caso – que vem abaixo. É também um pouco da humanidade e, pior, da mitificação da figura parental como super-herói. O que Louie está a dizer é que estamos a segundos de nos borrarmos todos e de destruir uma imagem de dignidade e respeito. Acontece e, quando acontecer, é impossível de controlar. Esse, para mim, era o grande momento de humilhação na ficção de Louis C.K.. Até ter visto este filme.

Há um momento quase no final do filme em que Leslie confessa a Glen que o que o fascinou na televisão foi essa ideia de criar uma coisa sem fim. “Louie” era essa coisa sem fim para mim. Uma das melhores séries de televisão de sempre (é e continuará a ser) que poderia voltar a qualquer momento com a liberdade que Louis C.K. conquistou. Isso tudo ruiu com a verdade sobre Louis C.K. e a ideia do fim de uma série magnífica e humana é a segunda coisa (é evidente qual é a primeira) que mais custa a digerir nisto tudo.