Terá sido na “vigésima quinta hora”, ou seja, já fora de prazo, que o PS recuou na aprovação da proposta do Bloco de Esquerda para criar uma contribuição extraordinária sobre os produtores de energias renováveis. Foi o que disse a deputada do BE, Mariana Mortágua, quando acusou os socialistas de “deslealdade” e disse que o Governo “não honrou a palavra dada” sobre uma proposta que permitiria ir buscar 250 milhões de euros a estas empresas para baixar o preço da eletricidade. O travão à nova taxa sobre as renováveis foi decidido pelo primeiro-ministro, António Costa.

O PS votou a favor da proposta do Bloco na sexta-feira à noite e esta segunda-feira votou contra. Mas a mudança de opinião não aconteceu em dois dias. Terá sido em três ou quatro horas na noite de sexta-feira: entre a hora da primeira votação e das primeiras notícias, e a tal “25º hora” em que os socialistas avançaram com um pedido de avocação, para voltar a votar esta segunda-feira a polémica contribuição. Em sentido contrário.

Lobby ou cooperação? PS muda de opinião em dois dias e chumba contribuição sobre eólicas

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Mariana Mortágua disse no plenário que a medida foi trabalhada e adaptada nos seus detalhes em acordo com os ministérios da Economia e das Finanças, que deram o seu aval. O Observador sabe que a proposta final para a contribuição extraordinária sobre as renováveis, nos termos em foi votada na sexta-feira, seria do conhecimento de alguns membros Governo há alguns dias, ao contrário do que terá acontecido com os deputados socialistas que a votaram na Comissão de Orçamento e Finanças e que só a terão recebido em papel minutos antes da votação.

O PS tinha então a indicação para votar a favor da proposta do Bloco. O partido de Catarina Martins recebeu luz verde — confirmou o Observador junto de várias fontes –, através do secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, que é quem faz a gestão do processo negocial com os parceiros do Governo no Parlamento. A validação da medida tinha sido dada pela Economia, através da secretaria de Estado da Energia, e não foi obstaculizada pelo Ministério das Finanças. A receita resultante da proposta do Bloco seria canalizada para abater o défice tarifário e baixar os preços da eletricidade, não tendo qualquer impacto no orçamento ou no défice público. Mas, nesta fase, o debate não terá chegado ao primeiro-ministro.

O Observador tentou contactar os dois ministérios sobre este assunto. A secretaria de Estado da Energia, tutelada por Jorge Seguro Sanches, não respondeu e o Ministério das Finanças remeteu para a Secretaria de Estado dos Assuntos Parlamentares, que também não comenta.

Para o Bloco, a mudança de voto do PS terá sido o resultado das movimentações do setor, assim que foi conhecida a aprovação da nova contribuição. Isso mesmo foi sublinhado por Mariana Mortágua no Parlamento.

“Quando era preciso um primeiro-ministro com nervos de aço para responder às empresas que pretendem manter rendas de privilégio, o governo falhou”.

O risco de processos judiciais

Do gabinete do primeiro-ministro, a resposta também é o silêncio, quando confrontado com a informação, confirmada junto de várias fontes, que a decisão de recuar face à primeira votação veio do próprio António Costa. E aconteceu logo na sexta-feira, com o Governo a ser sensibilizado para o risco de se multiplicarem os processos judiciais por parte de investidores que tinham avançado para o negócios das renováveis, a contar com condições específicas. O que ficou definido é que a proposta teria de ser “estudada e debatida com o setor”, diz uma fonte socialista. Para evitar o que poderia parecer uma declaração de guerra “aos operadores”.

Na verdade seria mais uma. As empresas de energia impugnaram várias medidas legislativas, em particular a contribuição extraordinária sobre o setor da energia, uma medida que visa as grandes empresas — EDP, Galp e REN, que foi lançada pelo anterior Governo e prolongada pelo atual.

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Foi com base em todos estes argumentos que o PS acabou por avocar a proposta a nova votação, a pedido do Governo, desta vez no plenário da Assembleia da República, chumbando o que tinha começado por aprovar.

O recuo provocou algumas tensões no grupo parlamentar socialista e, no momento da votação, o deputado socialista Ascenso Simões furou a disciplina de voto e votou a favor da proposta do Bloco. Em declarações ao Observador, o deputado socialista justificou a sua posição: “Não compreendo a mudança de sentido de voto do PS de sexta para hoje”. E acrescentou: “Há um dever de lealdade entre partidos que apoiam a solução governativa (eu que nem sou um entusiasta)”. O deputado independente eleito pelo PS Paulo Trigo Pereira não votou ao contrário da bancada, mas fez uma declaração de voto a mostrar a sua discordância sobre a posição do partido.

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No debate das propostas avocadas, o Bloco de Esquerda fez logo a interpretação de que o recuo do Governo terá sido o resultado das movimentações dos lobbies das energias renováveis. O diploma do BE justificava esta medida com os ganhos excessivos da EDP Renováveis, face a outros mercados onde está presente. Jorge Costa, o deputado que defendeu o diploma, e o mesmo fez Mariana Mortágua, mais tarde, já com o primeiro-ministro do hemiciclo. É com base nas contas desta empresa, que por estar cotada em bolsa detalha números das suas operações, que o Bloco sustenta a tese de que os consumidores pagam mais 400 milhões de euros do que pagariam se fossem aplicadas as condições que a EDP Renováveis tem na vizinha Espanha, país onde este setor sofreu cortes significativos na remuneração.

Segundo uma nota do Haitong, banco de investimento, a taxa sobre as renováveis poderia retirar 3% ao EBITDA (margem operacional) da EDP Renováveis e 1% ao EBITDA da EDP. No entanto, nos últimos meses o Governo tem anunciado várias medidas legislativas que prejudicam a EDP. Por outro lado, esta contribuição iria afetar também outras empresas, sobretudo eólicas — que recebem 90% do sobrecusto das renováveis, mas também solares e mini-hídricas, tudo produtores cujos contratos lhes garantem uma remuneração acima do mercado.

Não é a primeira vez que o Bloco de Esquerda tenta estender a contribuição sobre a energia às renováveis e numa primeira proposta de alteração previa que a CESE fosse aplicada em 2019, em moldes a definir pelo Governo. A proposta que acabou por ir a votos era mais ambiciosa na receita a cobrar e penalizadora para as empresas do setor.

Medida seria fatal para o setor, diz associação das renováveis

Para o presidente da APREN (Associação Portuguesa de Energias Renováveis), “imperou o bom senso. Alguém no Governo deve ter feito as contas e percebeu que seria a morte” do setor das renováveis em Portugal. Em declarações ao Observador, António Sá da Costa lembra que a medida do Bloco, uma taxa de 30% sobre o sobrecusto que é pago às produtoras renováveis, em relação ao preço de mercado. E esse custo não era dedutível ao IRC que seria pago por uma receita não recebida.

“Estamos a falar de um custo para as empresas que poderia chegar a 30% da sua faturação”, incluindo o IRC. Era uma forma “de confisco “que iria pôr as empresas do setor a ter resultados negativos”. Além de que, sublinha, iria contra todos os compromissos assumidos por Portugal a nível internacional que prometem alcançar uma quota relevante de formas de produção renovável no mix de eletricidade e de energia. Ainda recentemente, na cimeira de Bona, Portugal comprometeu-se a acabar com as centrais a carvão até 2030, o que só é possível com uma meta de produção renovável muito elevada. Seria ainda voltar atrás nos contratos assinados pelo Estado português, desencentivando novos investimento no setor.

As operadoras renováveis com contratos de preços garantidos aceitaram, ainda durante o anterior Governo, pagar cerca de 25 milhões de euros por ano para reduzir o défice tarifário. Mas têm sido mais poupadas nas medidas recentes de corte nos custos da energia. As condições de remuneração destes contratos foram fixadas há vários anos e correspondem a tecnológicas menos eficientes do que as atuais. As últimas autorizações dadas para produção renovável, eólica e solar, já não comportam preços bonificados face ao mercado.

Luís Testa, o deputado socialista que deu a cara pela mudança de voto do PS, disse ao Observador que os socialistas não são contra esta contribuição em tese, mas consideram que não é o momento oportuno para avançar. O deputado lembra tudo o que o Governo já fez cortar os custos e rendas no setor elétrico e baixar a fatura dos consumidores. Por outro lado, lembra o impacto positivo que as renováveis têm na balança comercial, reduzindo as importações de combustíveis fósseis para produzir eletricidade. Luís Testa admite que o PS volte a ponderar este cenário num quadro em que as renováveis tenham um maior peso no mercado de eletricidade.

No plenário, o socialista sublinhou a importância de cooperação com estas empresas, lembrando os investimentos anunciados para esta atividade. Quando questionado sobre porque mudou o partido de opinião na sexta-feira à noite, o deputado remete para os colegas da Comissão de Orçamento e Finanças.