O apartamento pombalino é tão impressionante como qualquer outro da sua espécie. Uma planta de salas interligadas, pé direito alto, janelas generosas e painéis de azulejos setecentistas que nenhum ser humano profissionalmente ativo se importaria de ter na repartição onde labora. É esta a nova casa de designers, técnicos, investigadores, artistas, empreendedores e artesãos. Na realidade, são os primeiros e os últimos as peças chave do novo The Third Floor, um cowork voltado para o futuro, futuro esse assente numa indústria socialmente mais equilibrada e na longevidade de ofícios artesanais. Nas palavras de Emmanuel Babled, que escolheu Lisboa para implementar este conceito, “um local onde várias pessoas podem trabalhar pelos mesmos objetivos”.

Emmanuel Babled, o designer por detrás do The Third Floor © João Porfírio/Observador

Comecemos por apresentar o anfitrião, que há quase um ano mudou o seu estúdio, Babled Design, de Amsterdão para Lisboa. Instalou-o neste mesmo prédio, mais precisamente no primeiro andar, e com ele trabalham seis pessoas. Lá dentro, é como se entrássemos num universo paralelo, onde o mobiliário minimal e os computadores moderninhos só deixam que um único elemento brilhe, o vidro. Mas não é um vidro qualquer. Emmanuel fez das suas peças verdadeiros tesouros de Murano, tesouros esses que são vendidos nos quatro cantos do mundo e não propriamente a preços de bazar. Há 25 anos a desenhar peças únicas, e não só, é um dos nomes fortes da escola milanesa.

A certa altura, dar continuidade ao trabalho com que fez carreira deixou de ser suficiente. “Como designer também quero ajudar a desenhar uma sociedade, não apenas objetos”, confessa em entrevista ao Observador. Enquanto designer e artista de vidro de Murano, Emmanuel sempre trabalhou de perto com os artesãos deste arquipélago, a um quilómetro do centro de Veneza. Em outubro deste ano, apresentou Hands-on, um documentário que nos leva até aos bastidores da produção das peças de Babled. Ao mesmo tempo que mostra o processo por detrás da manipulação do vidro, do mármore, da madeira e do metal, o designer reflete sobre o papel dos próprios artesãos.

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“Com o documentário confrontei-me. Percebi que tinha de partilhar esta minha relação com o saber fazer e com os artesãos com outras pessoas e pô-las a trabalhar com o mesmo objetivo”, afirma o designer de 50 anos. A pescada enfia o rabo na boca e voltamos ao The Third Floor, onde as salas estão preparadas para equipas a trabalhar a tempo inteiro, mas também para autodidatas que só precisam de passar por aqui uma ou duas vezes por mês.

Peças da Babled Design, uma delas em mármore e vidro de Murano © Divulgação

A ocupar um dos escritórios encontrámos Fatima Azhara e o projeto Passa ao Futuro. Projeto, ponto e vírgula, que a ideia que esta nova-iorquina trouxe para Portugal já está no terreno há algum tempo. Quando Emmanuel a conheceu, fez-se outro clique. Fatima está a mapear todos os artesãos do país, em todos os ofícios possíveis e imaginários. O mapa só deverá estar completo dentro de três anos, mas essa parte é apenas a criação de uma base de trabalho. A partir daí, o objetivo do Passa ao Futuro e conectá-los com jovens designers, estejam ou não em Portugal. Para estabelecer esta rede é preciso trabalhar com os artesãos, ajudando-os a adaptarem o seu trabalho à sociedade atual e, por vezes, a ultrapassarem a falta de matérias-primas. Recentemente, Fatima fez a ponte entre um mestre de tapeçaria alentejano que não tinha lãs para trabalhar e uma pequena industrial do norte que não sabia o que fazer a tantos novelos. A história e simples, mas revelou-se a melhor forma de ilustrar o projeto.

Há uma mudança na forma como consumimos: queremos menos, mas com melhor qualidade e com um maior compromisso em relação ao que estamos a comprar. E a verdade é que há um storytelling associado ao que é feito artesanalmente. Já não é uma questão de preço, mas sim de produzir com conhecimento e a indústria tem de estar preparada para responder a isso”, explica o designer.

O método da casa é puramente colaborativo e estabelecer pontes são as palavras de ordem. E outro bom exemplo disso é a VICARTE, ela própria resultado da união de esforços entre a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e a Faculdade de Belas Artes. Desde que nasceu, em 2002, tem-se dedicado ao desenvolvimento de novos materiais de vidro e cerâmica para a arte contemporânea, através do estudo de práticas de produção históricas e tradicionais. Mas nos últimos tempos, a VICARTE também tem trabalhado lado a lado com a Babled Design. As leis restringem cada vez mais os componentes que podem ser usados na produção das peças em Murano. O último a ser proibido foi o arsénico, responsável por dar ao vidro uma tonalidade branca e opaca. Atualmente, a plataforma de investigação e o estúdio de design procuram a solução através da procura de novos componentes. Já há universidades italianas envolvidas, mas continuam a ser precisos apoios. O tempo, esse, é reduzido, uma vez que já há pequenas unidades de produção a fechar em Veneza.

Oficina em Murano onde as peças da Babled Design são produzidas e onde foram filmadas partes do documentário “Hands-on” © Divulgação

Babled fala num momento de mudança na produção e no consumo. A estandardização atingiu o seu auge, agora as atenções começam a dirigir-se para o especial, o feito à mão. Só há um pequeno pormenor: esse está a desaparecer. “Há uma mudança na forma como consumimos: queremos menos, mas com melhor qualidade e com um maior compromisso em relação ao que estamos a comprar. E a verdade é que há um storytelling associado ao que é feito artesanalmente. Já não é uma questão de preço, mas sim de produzir com conhecimento e a indústria tem de estar preparada para responder a isso”, explica o designer.

Este é um momento ótimo para Portugal, está na mira do mundo criativo. O país está a entrar numa nova era e a tirar muito partido da economia global, onde já não é uma questão de se ser grande, mas sim de se ser raro”, completa Emmanuel.

Neste processo a tecnologia também conta, e muito. Que o diga a italiana Torart, que tenciona passar algumas vezes por Lisboa. De repente, a pesada tradição do mármore uniu-se à robótica e à alta precisão. Só através delas é que algumas novas peças são possíveis. É o caso do abajour de mármore branco pendurado no teto de uma das salas. A espessura é tão fina, que em algumas partes chega a deixar passar a luz. Os avançados cortes a laser bem como os novos equipamentos de scanning permitem também a artistas e designers fundirem vidro e mármore e torná-los numa peça só.

Peças da Sofalca © Divulgação

O leque de residentes fica completo com a portuguesa Sofalca, um exemplo a nível internacional de autossuficiência energética (atualmente está nos 95%). Esta fábrica não produz uma cortiça qualquer, ela produz falca, um tipo muito específico de cortiça, resultante de um processo totalmente natural, sem recurso a aditivos. Este ano, a Babled Design rendeu-se à mais portuguesa das matérias primas e produziu, em parceira com a Sofalca, uma edição da sua Quark Table em cortiça. “Este é um momento ótimo para Portugal, está na mira do mundo criativo. O país está a entrar numa nova era e a tirar muito partido da economia global, onde já não é uma questão de se ser grande, mas sim de se ser raro”, completa Emmanuel.