À primeira conversa, Zé Pedro dizia isto, uma frase chave que abria caminho para o resto da conversa. “Trata-me por tu, trata-me sempre por tu”. Dizia isto quando começava cada entrevista, dizia isto quando atendia todos os telefonemas para comentar qualquer assunto, mais político ou mais musical. Zé Pedro, mestre do rock’n’roll, senhor do punk rock, que se fez homem sem nunca deixar de ser garoto, como todos queremos fazer, quase todos os dias, mas nunca conseguimos. Morreu aos 61 anos para nos deixar sem muito mais a dizer que “foi o maior, ainda é o maior”.

Pensemos bem nisto: Zé Pedro foi o homem que foi atrás do que quis todos os dias. Que procurou tudo na música e que para ela se atirava sem pensar em razões ou consequências, ele simplesmente não tinha tempo para isso. Quando era garoto e ouvia os discos, entre os que encontrava em Lisboa ou os que lhe arranjavam vindos de outras origens. Quando escrevia sobre música, nos tempos em que se fez às coisas do jornalismo, sempre à espera que as canções lhe mostrassem o caminho a seguir. Quando queria ser punk rocker, quando faz as primeiras bandas, quando se transformou no rei dos Olivais e depois de todas as ruas por onde passasse.

Entrevistá-lo era só mais uma conversa, boa palavra, fácil, imediata. Recordava sempre tudo, com uma memória difícil de igualar, quanto mais fazer melhor. Sabia as datas e os singles, lembrava sempre os ensaios na Cenófila, os primeiros álbuns, as desventuras e glórias no Rock Rendez Vous. Como foram pais, padrinhos, afilhados e tudo o que se quisesse, do rock português e de qualquer outro rock. Falava dos anos 80 com olhos de glória e, de quando em vez, com ares de dúvida sobre alguns dos caminhos que tomou. Ainda assim, sempre certo que todas as decisões que tomou eram as certas, pelo menos para chegar onde chegou.

E chegou aos anos 90 já enquanto glorioso líder dos Xutos & Pontapés. Não havia volta a dar, entrávamos na sala de concertos, no festival ou onde fosse e era para ele que olhávamos. Ele e aquela pose de domador de guitarras, de rufia com toda a simpatia do mundo entre o cabedal que vestia. Era uma estrela pop, aquilo que sempre quis ser mas de uma maneira bem mais humilde que a definição pode deixar entender. Nunca ninguém se sentiu menos do que incrível ao lado de Zé Pedro e era essa a maravilha que o acompanhava a toda hora. Façam o teste, façamos todos o teste: quantos o encontraram na rua, chamavam por ele e ele respondia, dizia que sim, dizia olá, dava abraços, tirava fotos, soltava gargalhadas e quase que dizíamos que era nosso amigo só por cinco minutos ali ao pé de nós. E nunca, por nenhum momento isso lhe retirou fosse o que fosse à categoria de rockstar.

Anos 90, uma ou outra dúvida, discos enormes na carteira, canções inultrapassáveis, e toda a legitimidade para a banda não saber bem para onde ir. Mas foram, não havia volta a dar. “Como não continuar”, diria Zé Pedro, homem que nunca foi de desistir — esteve no Coliseu dos Recreios há pouco tempo, é óbvio que nunca foi de desistir, foi ele que o disse, foi ele que quase o gritou. Antes do virar do século, depois do virar do século, estúdios, concertos, festivais, aniversários redondos, salas mais pequenas, o Pavilhão Atlântico, fosse o que fosse. E aquela guitarra sempre nos joelhos, aquela coisa de “já quis fazer parte dos Clash mas hoje tenho tudo”. E tinha tudo.

Com o Zé Pedro, os Xutos motivaram romarias de fãs, gerações que se cruzavam, era uma espécie de boa doença que passava de uns para outros, quem nos dera a todos apanharmos uma destas. Lenços vermelhos, bandeiras, tatuagens, canções decoradas, todas decoradas, foi sempre assim, como se qualquer concerto pudesse ser o último. Nunca era, não podia ser, e essa certeza inabalável era sempre confirmada por Zé Pedro, que quando deixava o palco sorria sempre. Dizia adeus mas sorria, como se continuasse a ser o tal garoto do bairro. E depois esperávamos pela próxima data. Mesmo aqueles que diziam “mas outra vez um concerto dos Xutos?”. Que raio de pergunta. Bastava o circo começar, cambada de feras, cambada de feras. E o Zé Pedro, sem cantar, sempre com a mania que rugia mais alto que todos. E depois, fora do palco, a conversa do costume: “Trata-me por tu, trata-me sempre por tu”.

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