Título: A Porta
Autor: Magda Szabó
Editor: Cavalo de Ferro
Páginas: 240
Preço: 17,69€

A Porta, o romance parcialmente autobiográfico escrito por Magda Szabó em 1987, e agora editado pela Cavalo de Ferro, começa com a descrição de um pesadelo que persegue e aterroriza a narradora (também ela chamada Magda), sendo que a justificação para o terror por ele gerado ocupará todo o romance. A história da relação de Magda com Emerence, a empregada doméstica em cuja casa nunca ninguém entrou, será, aliás, sempre narrada a partir de um ponto inicial, misterioso e pouco desenvolvido, a que serão acrescentadas, com enorme mestria, inúmeras revelações que farão do romance uma elipse que levará lentamente o leitor à revelação final. Começamos com muito pouco e, sem pressas para que o horror se adense, somos conduzidos até ao momento derradeiro em que, como sabemos desde o início, Magda, de acordo com a descrição da própria, ao procurar salvar Emerence, a acaba por matar.

A Porta é, então, um livro sobre a descoberta da culpa absoluta de alguém cheio de boas intenções; é um romance sobre como podemos ser irremediavelmente atormentados por um gesto de boa vontade e por um crime que nenhum sistema penal de nenhum país do mundo pune. A Porta é, no fundo, sobre como abrir uma porta pode ser um gesto bem mais hediondo do que deixar uma pessoa morrer sozinha afundada em excremento.

Ao contratar Emerence, Magda irá repetidas vezes tentar aproximar-se da velha empregada, tentando criar pontes a partir da origem comum de ambas, dando-lhe presentes ou estabelecendo conversas banais. No entanto, todas estas tentativas são durante muito tempo ostensivamente rejeitadas por Emerence, que parece apenas desejar distância e silêncio. Esta vontade é tão clara que, da primeira vez que se encontram, Magda não consegue sequer ver-lhe a cara. Existe, portanto, uma simetria evidente entre o modelo narrativo elíptico do romance e o conteúdo do mesmo, visto que também a relação entre ambas evolui de forma muito gradual, em constantes avanços e recuos, simetria essa que permite apontar para uma ligação umbilical, estabelecida depois da morte de Emerence, entre esta e Magda.

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Logo no início do romance, Magda afirma que:

“a minha religião não conhece a confissão individual, são as palavras do nosso pastor que nos asseveram sermos pecadores, votados à condenação, porque pecámos de todos os modos, contra os mandamentos. Recebemos, assim, a absolvição, sem que Deus exija de nós explicações ou pormenores.

Dou-os eu, agora.”

Parece ser este, em grande medida, o problema levantado pelo romance. O grande erro de Magda no romance, que conduz ao desfecho trágico pelo qual esta se martiriza constantemente, é o de olhar para Emerence como uma pessoa que merece ser vista não na sua absoluta individualidade, mas a partir de conceitos abstratos que geram uma resposta automática. Magda, quando interage com Emerence, procura responder à estranheza desta inserindo-a numa qualquer ideia que a consiga definir de forma simples, tentando ver nela por vezes uma empregada doméstica, noutras uma amiga e até, em desespero absoluto, uma húngara, o que gera a resposta normal que Magda dá a conceitos como “empregada doméstica”, “amizade’ e “Hungria”.

O que acontece, no entanto, é que Emerence não é, em última análise, nem húngara, nem uma amiga, nem muito menos uma empregada doméstica e, portanto, todas estas abordagens estão condenadas ao fracasso. Emerence é Emerence e só sendo vista dessa forma é que poderá começar a ser compreendida. Daí que, para que consigamos perceber o crime de Magda, tenhamos que avançar devagar e deixar para trás o nosso vocabulário habitual, os nossos códigos civis, que não prevêem penas particularmente graves para pessoas que abrem portas, e até os pastores que descrevem por nós os nossos pecados, sem que tenhamos que responder individualmente por eles. Emerence funciona a partir de leis próprias e Magda só a consegue descrever de forma minimamente competente quando afirma que “Emerence era a única habitante de um reino com uma só pessoa, mais soberana que o papa de Roma” (p.99).

O melhor exemplo destas leis próprias que regem Emerence acontece quando o bairro de Magda organiza uma recolha de velharias. Emerence vasculha o dia inteiro em busca de coisas com potencial interesse para Magda, oferecendo-lhe um quadro em mau estado, uma cafeteira, um falcão empalhado, uma caixa de maquilhagem, uma bota, um anão de jardim e um cão de louça. Diante de todos estes bibelots, Magda fica atrapalhada e, sem saber o que fazer, rejeita colocar alguns deles em lugares de grande destaque na casa e esconde o cão de louça. Ao aperceber-se disto, Emerence descontrola-se, insulta Magda e despede-se, visto que, no reino de Emerence, a amizade tem sempre primazia sobre as convenções sociais e os bons costumes que ditam que um cão de louça não pode estar numa sala de estar. Alguns dias depois, Magda aparece em casa de Emerence para lhe pedir desculpas e prometer que o cão de louça terá agora um lugar de destaque em sua casa. Ao ouvir isto, Emerence aceita regressar e, ao entrar em casa de Magda, atira o cão de louça ao chão, em respeito absoluto pela lei que colocava a amizade acima de tudo.

O romance contrapõe portanto duas ideias distintas de amizade: uma amizade como Magda a idealiza (que é, em boa verdade, a de todos nós), que “meteria tudo numa caixa, se pudesse, e tiraria de lá de dentro aquilo que lhe desse jeito naquele momento ou de que precisasse, aqui está a minha amiga, este é o meu primo, esta é a minha velha madrinha, o meu amor, o meu médico, uma flor seca da ilha de Rodes” (p.150) e a amizade segundo Emerence, que, num primeiro momento, por já muito ter sofrido, se procura proteger e esconder, mas que não resiste a oferecer-se de forma absoluta, deixando Magda “entrar onde ninguém entrou. Mais não posso oferecer-lhe porque mais não possuo. E que mais desejaria?” (p.150), uma amizade que, por se entregar tão completamente, se torna vulnerável à destruição absoluta que a traição de Magda irá trazer.