Quanto mais lemos sobre Grigory Rodchenkov, mais pensamos que a vida do homem que funcionou como “Garganta Funda” no caso que deixou a Rússia fora dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2018 dava um filme. Para já, deu um documentário no Netflix. Um documentário de quase duas horas que mudou por completo o seu propósito a partir do momento em que, com respostas simples de “sim” e “não”, o químico russo denunciou o sistema de recurso a substâncias dopantes mais evoluído de sempre alguma vez conhecido.

Rússia afastada dos Jogos Olímpicos de Inverno

“Inicialmente, concebi Ícaro como um documentário semelhante ao ‘Super Size Me’ [produção na qual um cineasta sobrevive 30 dias a comer McDonald’s] onde eu seria o objeto da experiência, para expor o fracasso dos sistemas anti-doping. No final, a questão passou a ser outra: qual é o bom deste sistema que supostamente policia o doping se consegue ser ultrapassado desta forma?”, explicou o realizador Bryan Fogel, que nas horas livres é um ciclista amador, ao The New York Times em agosto deste ano, quando o conteúdo foi disponibilizado.

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Muito se escreveu, falou e especulou sobre o alegado sistema de doping nacional que ajudava os atletas russos. Mas se isso existiu (ou existe) e é agora discutido, tudo se deve à figura de Grigory Rodchenkov, um químico com fama de louco de 59 anos que consegue gerar alguma compaixão e muito ódio na opinião pública e se encontra agora no programa de proteção de testemunhas dos Estados Unidos.

Depois de ter passado por um laboratório de Calgary, no Canadá, nos anos 90, onde terá começado a experimentar a produção de cocktails de substâncias proibidas que eram testadas em animais (sobretudo porcos), Rodchenkov voltou a Moscovo, onde nasceu, e foi nomeado em 2006 diretor do Anti-Doping Centre do país. Cinco anos depois, foi investigado com a irmã, a ex-atleta Marina Rodchenkova, pela venda de substâncias dopantes a atletas russos de várias modalidades, naquela que foi a primeira vez onde o seu nome saltou para os jornais.

Acabaria por ser ilibado de todas as acusações (ao contrário da irmã, que foi condenada a ano e meio de prisão), mas nem por isso bem: terá tentado cometer suicídio nesse ano de 2011, sendo depois diagnosticado como alguém que sofria de transtorno de personalidade – terá mesmo passado algum tempo no hospital psiquiátrico de Kashchenko. Em 2015, na sequência de um trabalho jornalístico de investigação, o Comité Olímpico Internacional entrou em contacto com o químico e, em duas entrevistas, Rodchenkov, que deixara de liderar o Anti-Doping Centre de Moscovo, admitiu tudo.

Se até aqui já tínhamos alguns traços típicos de um thriller, com suspense, intriga e espionagem, a partir desse momento o enredo adensa-se: após confessar numa investigação independente da Agência Mundial Anti-Doping (WADA) que destruíra de propósito 1.147 amostras para reduzir o impacto das descobertas, fugiu para os Estados Unidos no final de 2015, pouco antes das mortes misteriosas de dois outros antigos responsáveis da Agência Anti-Doping da Rússia, Vyacheslav Sinyev e Nikita Kamaev, num curto lapso de tempo.

Hoje, enquanto a Rússia vai pedindo a sua extradição depois de ter decretado a sua prisão por “abuso de poderes oficiais com graves consequências”, Rodchenkov encontra-se num programa para proteção de testemunhas em solo americano. Antes, no início de 2016, abordou todo o problema publicamente numa entrevista ao The New York Times, acrescentando que os Serviços de Segurança Federais do país sabiam de tudo e ajudaram mesmo a esconder todo o esquema que estava montado. A Rússia reagiu e o presidente, Vladimir Putin, negou por completo as acusações de “um homem com reputação de escândalos”.

“Era parte da conspiração para extorquir dinheiro aos atletas para esconder os resultados positivos de doping mas foi honesto nas declarações”, escreveu o Relatório McLaren, que “desmascarou” o sistema também com ajuda de uma agenda passada pelo químico/médico de todas as ações em 2014 e 2015. “Quaisquer que sejam as suas motivações e o que quer que tenha feito no passado, o doutor Rodchenkov estava a dizer a verdade quando deu as explicações a propósito da forma como escondia os resultados”, defendeu o Comité Olímpico Internacional (COI). “Não encontrámos qualquer vestígio dessa operação”, destacou um ministro dos desportos russo, Pavel Kolobkov, no seguimento de uma investigação interna.

Na Rússia, ninguém pode sequer ouvir falar no seu nome. E recuperamos um artigo de opinião de Alan Moore no RT para mostrar bem esse sentimento. “O chorão da Rússia é bom para o negócio dos filmes. A última foi um documentário que glorifica um fugitivo com sangue nas mãos. Retratado como um denunciador herói, o Doutor Morte, Grigory Rodchenkov, tem uma produção Pablo Escobar/Hollywood”, escreveu num texto onde cita Putin, que considerava tratar-se de alguém que tornou o doping num negócio privado.

É por isso que, nesta altura, o principal receio do “Garganta Funda” passe pela segurança da família que ainda está na Rússia. “Como o mundo acabou de ver, o Dr. Rodchenkov deu provas credíveis e irrefutáveis do sistema de doping nacional patrocinado pela Rússia, que no seu limite era supervisionado e financiado pelo então ministro dos desportos Vitaly Mutko e outras personalidades de topo no governo”, comentou o advogado Jim Walden, numa comunicação à imprensa amplamente difundida após o anúncio do COI.

“Em novembro de 2015, fugi da Rússia determinado em contar ao mundo sobre o programa de doping do meu país para atletas olímpicos. Como antigo diretor do Centro de Anti-Doping da Rússia, encontrei provas indiscutíveis de um sistema estatal batoteiro generalizado do meu país e tenho esperança que isso possa levar a uma mudança. Mas as expetativas que tinha para uma reforma visível começaram a desvanecer. Nas últimas semanas, as notícias sugeriram que a Agência Mundial Anti-Doping está a tentar encontrar uma forma de fugir às descobertas da sua investigação independente, que identificou cerca de 1.000 atletas russos que nos Jogos de Sochi e em outras competições podem ter usado um programa de melhoria de rendimento com doping”, escreveu num artigo publicado no The New York Times em setembro.

“A Rússia tem recusado aceitar responsabilidade. O meu antigo chefe, Vitaly Mutko, um vice-primeiro-ministro e antigo ministro do desporto, negou de forma repetida ter conhecimento das minhas atividades como diretor do Centro Anti-Doping de Moscovo, quando supervisionei o programa de doping russo com a ajuda de vários agentes da antiga KGB e muitos oficiais do governo. Se alguém acredita que poderia ter feito tudo isto sem o conhecimento e apoio do ministro do desporto é porque não sabe nada sobre a Rússia (…) Isto é uma caça às bruxas e eu sou a bruxa. Mas sejamos também claros: os atletas russos dopados são também, de variadas formas, vítimas”, acrescentou no mesmo artigo que deixou mais pormenores sobre o esquema montado.